Prazer de ler

Mercado editorial brasileiro abre espaço para livros escritos por profissionais do sexo. Lola Benvenutti vem se juntar a Gabriela Leite e a Bruna Surfistinha

por 13/09/2014 00:13
Tiago Barbosa


Na antessala da maioridade, a estudante Gabriela Natalia da Silva tomou uma decisão no mínimo inusitada: adotou um codinome e resolveu cobrar dinheiro para fazer sexo. Era o passo mais ousado de alguém que perdera a virgindade aos 11 anos com um homem de 30 que conhecera em bate-papo na web. Lola Benvenutti, de 22, seguiu adiante na cruzada pelo prazer. Criou um blog e passou a relatar as experiências com os clientes. Angariou fãs e reuniu essa vivência no livro O prazer é todo nosso (Editora Mosarte).

Formada em letras pela Universidade Federal de São Carlos (SP), a mestranda Gabriela ampliou a lista de garotas de programa cujas experiências viraram livro. O caso mais notável no Brasil atende pelo nome de Bruna Surfistinha – nome de guerra de Raquel Pacheco –, inspiração para o filme homônimo estrelado por Deborah Secco e autora de O doce veneno do escorpião. Somam-se ao grupo a ativista brasileira pelos direitos da prostituição Gabriela Leite (já falecida), Paula Lee e a portuguesa Maria Porto, além das gêmeas holandesas Fokkens – referências septuagenárias no assunto.

Entre a internet e a vida real, todas encontraram nas letras o modo de levar aos quatro cantos do mundo os devaneios vividos entre quatro paredes. As histórias de Lola Benvenutti frutificaram na rede, o paraíso fértil do interesse sexual em que uma em cada quatro pesquisas se referem a sexo. É bom lembrar: 12% dos sites contêm pornografia, como atestou pesquisa divulgada pela revista norte-americana The Week no início do ano.

Os relatos se particularizam pela defesa da prostituição como meio para extravasar a sexualidade. A prostituta foge do estereótipo de ter escolhido a profissão por causa de traumas, falta de oportunidades ou golpe socioeconômico.

Filha de ex-militar e ex-enfermeira, estudiosa e querida por amigos, Lola bagunça o preconceito sobre a ocupação ao trocar vida acadêmica por deleites na cama. “Não trato a prostituição como um fardo. O sexo torna a pessoa muito melhor”, crava.

Em O prazer é todo nosso, a escritora descreve encontros, distribui conselhos amorosos e sexuais, comenta traços e trejeitos de clientes. O tom é quase professoral. E há evidente preocupação em extrair prazer de qualquer situação. A linguagem simples e o passeio por dúvidas cotidanas – muitos a procuram para fazer perguntas – aproximam o leitor da prostituição.

A voz “Livros assim mostram o outro lado da história. Até se for inventada, aumentada, é uma voz”, pondera a coordenadora-geral da Associação das Profissionais do Sexo de Pernambuco, Nanci Feijó. “É uma forma de elas se tornarem melhores dos que as que não têm como se embrenhar pelo caminho das letras”, contrapõe Cecília Patrício, doutora em antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), integrante de um grupo de estudos sobre família, gênero e sexualidade.

Acostumada a gerar reações pela profissão escolhida, Lola se foca na carreira enquanto decide entre propostas para levar sua história ao cinema ou ao teatro. Dona de um apartamento nos Jardins, bairro rico de São Paulo, ela pretende manter os atendimentos e o blog. “Graças à minha profissão, escrevi o livro. Juntei minhas duas paixões: sexo e literatura”, afirma.

DA CAMA  AO LIVRO

Gabriela Leite
Apontada como a principal ativista pelos direitos da prostituição no país. Socióloga e prostituta, trabalhou em redutos boêmios de São Paulo e Minas Gerais. Fundou a ONG Davida, a Daspu e a Rede Brasileira de Prostitutas. Escreveu Filha, mãe, avó e puta (Objetiva). Morreu em 2013, aos 62 anos.

Raquel Pacheco
Com o codinome Bruna Surfistinha, saiu da casa dos pais adotivos para ser prostituta. Narrou experiências em blog, estrelou filmes pornográficos e publicou o best-seller O doce veneno do escorpião (Panda Books). Filme baseado na vida dela foi o terceiro nas bilheterias brasileiras em 2011.

Paula Lee
A brasileira foi prostituta em Portugal e se manteve na profissão quando regressou ao país. Passou a relatar suas experiências em blog e lançou o livro Alugo meu corpo (Planeta do Brasil).

Martine e Louise Fokken
As duas irmãs holandesas trabalharam no Bairro da Luz Vermelha, reduto da prostituição em seu país, onde a prática é regulamentada. Em As senhoritas de Amsterdã (L&PM) descrevem a experiência de mais de meio século no ofício.

Três perguntas para...



Lola Benvenutti
Garota de programa e escritora

Como foi a escolha da profissão?
Foi natural. Sempre tive uma visão romântica da profissão. E sempre gostei muito do assunto. Me descobri cedo sexualmente. Aí, decidi cobrar. Já tinha curiosidade. Caçava homens na internet que não tinham perfil de assassino, mas tive muita sorte. Nunca me aconteceu nada de ruim. Lembro-me até da primeira vez. Já tinha defendido meu trabalho de conclusão de curso, decidi criar o blog. Sabia que sofreria preconceito.

E sofreu?
Quem estava afastado não se aproximou. A gente é criada para não achar isso normal. Para a minha mãe foi difícil. Um professor chegou a publicar um poema no Facebook, dizendo que eu fazia por dinheiro, que grandes intelectuais não se importam com dinheiro, que não era inteligente. Uma mulher com cujo marido saí riscou o meu carro. Dia desses, quase fui barrada em um bar por ser prostituta. Ser puta é uma lida diária. Você tem que estar armada sempre.

O livro permitiu a você falar disso?
Vejo-o como uma chance de ser vista como pessoa séria. Não trato a prostituição como fardo. O sexo torna a pessoa melhor. Nele discuto sexualidade, tenho carinho pelos seres humanos. Acredito que nem toda prostituta é vitimizada. Mas as pessoas tratam o tema de forma deprimente, e as garotas se convencem disso, não se aceitam.

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