Universo dentro do peito

O primeiro livro de poemas do jornalista carioca Cristiano Menezes remete à delicadeza dos haicais e dos versos de Mário Quintana. Para ele, poesia é combustão recorrente

por 13/09/2014 00:13
Claudia Pinheiro/divulgação
None (foto: Claudia Pinheiro/divulgação )
André di Bernardi Batista Mendes



Pelo mundo existem bares. Poetas geralmente (pelo menos os melhores) frequentam bares. Pois a editora 7 Letras acaba de lançar Guardanapos, primeiro livro do jornalista carioca Cristiano Menezes. Com versos que prezam a simplicidade e o lúdico, o poeta mostra equilíbrio num estilo despojado, sem perder em termos de profundidade e clareza.

Os poemas deste belo livro parecem ter nascido do improviso. Isso porque a noite desce improvisada; isso porque o dia surge diante do acaso, aos poucos. As melhores melodias devem surgir justamente do imprevisto. Isso porque as melhores coisas da vida – os amores, as paixões – nascem, quase sempre, de distrações.

A desatenção, às vezes, transforma-se numa arma para o poeta, transforma-se numa espécie de faca extremamente afiada. É o caso de Cristiano Menezes. Os poemas de Guardanapos, é bom que se diga, passam longe de erros e equívocos. O suposto alheamento dos poetas é feito de armadilhas. Pois, como crianças quando brincam, os poetas, com o espírito distante, mas ampliado de águas insubmissas, chegam mais rápido ao coração das coisas.

Por isso, talvez, Cristiano apresenta poemas curtos, poemas feitos de um clarão que só os melhores artistas têm a coragem de enxergar. O coração do poeta é feito de tempestades e seus poemas são relâmpagos: “Quando amo/ percebo o imenso/ Com o universo no peito/ acho graça da rotina/ e a levo com jeito…”.

Cristiano flerta com a delicadeza e o frescor dos haicais. Sabe medir o tom e ampliar o sentido dos azuis, dos perigos – que são tantos. O poeta rabisca nos cadernos, nos guardanapos, garranchos de pura luz. Cristiano, sem artifícios, sem vícios literários, não grita os seus poemas, ele mantém o ritmo em cada verso, como se chovesse forte e desse processo surgissem cheiros e percepções. Cristiano compartilha o seu arsenal de ideias. Cristiano fala da vida, que pode ser atrevida, invasora, manipuladora, estelionatária, impostora ou mera bijuteria.

O que dizer de um poeta que sabe de seus sumiços, o que dizer de um poeta que “estava nuvem”, e, às vezes, pode ser também “completamente Japão”? Cristiano celebra a vida no que ela tem de melhor: os encontros, as verdades inúteis, os descaminhos, o sabor das coisas e das palavras todas. Isso porque a vida às vezes se torna uma espécie de objeto, que cresce num processo violento de doação espontânea. O poeta assimila esses gestos extremos feitos de sombra e nitidez. O que dizer de um poeta que vestiu o coração com um quimono? Nas madrugadas de Cristiano cabem vinhos e firulas.

O poeta gosta de coisas boas: “Enfim/ o reverso de tudo/ o outro lado da moeda/ que não paga o prejuízo/ de viver longe do verso// Enfim a falta de juízo/ de juízes e outros mais/ O prazer de errar/ sem hora pra acordar”. Distraidamente, como quem não quer, ele acerta alvos sutis. O bom poeta só pode ser aquele que sai, tropicado, tropicando por aí.

Isso porque o poeta capta, registra, preza também a memória e o sabor que só as palavras, transformadas em verso, podem ter. Cristiano preza, assim, o cotidiano, o dia a dia, a boa conversa no botequim, sem perder a sofistição e um lirismo bruto: “Sentinelas fodidos e mal pagos/ defendem a estrutura do medo”. Os versos de Cristiano ainda guardam preciosidades: o bom humor, o afeto e a admiração pelas mulheres, que sem ele, que sem elas, nada acontece. Só pode ser bom, interessante, um poeta que grita e tem a coragem de dizeres, um poeta que não levanta bandeiras, que despreza, altivo , “o bafo da pouca vida”.

O carioca Cristiano Ottoni de Menezes nasceu em 1948. Poeta, radialista e jornalista, já atuou como repórter, editor, produtor, locutor, programador musical, roteirista e apresentador, além de exercer cargos de gestão. Criou e apresentou programas especiais sobre artistas da MPB, meio ambiente, ciência e tecnologia. Produziu de trios elétricos a shows. Guardanapos é o seu primeiro livro de poesia.


Vida que segue

Quero sentir o perigo
não para morrer
mas para buscar a saída
desse marasmo antigo
que boceja sem perceber
o bafo da pouca vida

Impossível sair tranquilo
ou escolher
o jeito mais delicado
de dizer com estilo
que não há como esconder
nosso anel quebrado

É hora de rabiscar
seguir os traços loucos
dessa mensagem amassada
no guardanapo do bar
onde em desenhos roucos
digo, somos página virada

. De Cristiano Menezes


GUARDANAPOS

. De Cristiano Menezes
. Editora 7 Letras, 65 páginas, R$ 26


entrevista

Cristiano Menezes
jornalista e poeta

De que forma a sua experiência profissional como jornalista influenciou ou influencia a produção de seus poemas?

Buscava sempre a poesia. Entrevistava poetas, fazia programas radiofônicos levando poetas ao estúdio e também dizia poemas. Rádio é som e, sempre que possível, procurava explorar ao máximo as possibilidades sonoras. Tanto em relação à sonoplastia quanto à palavra falada. Nesse exercício, fui percebendo a importância de se dizer poesia de maneira viva. O poeta, quando fala, não pode ser falso, impostado, piegas, desconectado do que diz. Senão mata-se o poema, a coisa não funciona e fica tudo muito chato. E, por cuidar muito da maneira de dizer o poema, passei a escrever buscando o ritmo, a sonoridade, enfim, a imaginar sempre o poema sendo dito.

Esta pergunta é inevitável, pois percebo nos seus versos sopros de Mario Quintana, de Drummond e até de haikais japoneses. Quais são as suas referências literárias?

Fico feliz com o que você me diz! Quintana, Drummond… Eles sempre me marcaram muito. A gente sempre aprende com os poetas que nos marcam, nos impressionam, nos ensinam não ensinando. E o que acontece é que vamos nos identificando com outros tantos, uns mais outros menos. Vamos nos alimentando de uma maneira de fazer a poesia e neste caminho há diversos encontros. Para citar alguns, Adélia Prado, Abel Silva, Mia Couto, Leminski, Elisa Lucinda, Pedro Lage, Chacal, Charles Peixoto, Luis Turiba, Ronaldo Santos, Mano Melo e, sempre, Fernando Pessoa.

Como nasceram os poemas do livro? Os textos foram produzidos especificamente para Guardanapos, ou foram surgindo ao longo do tempo?

Foram escritos ao longo dos anos. Dos anos 1970 pra cá. Foram escritos em diversos momentos. Fica bem nítido que em alguns sou eu bem mais jovem. Outros, em fases posteriores, e os mais recentes, já na feitura do livro.
 
Como é o seu processo criativo? Você é um poeta, digamos, disciplinado?

Não sou um construtor, mas estou sempre buscando dar forma a um poema. Uma espécie de combustão recorrente. Quando era mais jovem, deixava rolar e de repente surgia um poema. Com o tempo, passei a atender às exigências que a necessidade de escrever me impunha e passei a trabalhar com mais assiduidade o processo criativo. Passei a proteger essa necessidade no meu cotidiano. Nesse processo, o exercício de escrever tornou-se permanente e, enfim, uma atividade organizada, prioritária. Ou seja, alguma ordem na loucura.

Qual a importância da leveza, do coloquial? A informalidade interfere, ou ajuda, em seus textos?

Leveza e informalidade são sintomas de proximidade, de real contato nos encontros. O poema tem que proporcionar esta sensação de encontro.

A poesia ainda tem espaço na vida das pessoas?
É claro que, em muitos casos, em muitas circunstâncias, não se devem oferecer as pérolas… Não vai rolar, entende? Mas a poesia é múltipla, é plural. Chega de mansinho, ou chega sagaz, e chega forte, poderosa. Enfim, sempre haverá o lugar da poesia, essa expressão perene na história da humanidade, como a música, as artes plásticas e por aí vai.
 
Em que medida a poesia transforma o cotidiano? Em que medida a poesia transforma o poeta?
A poesia salva o cotidiano, na medida em que é percebida como um sentido maior. A vida não pode ser capturada e mantida refém das tensões cotidianas, seus fantasmas, varejos. Sem a poesia, o cotidiano torna-se insuportavelmente árido. A poesia transforma o poeta quanto mais ele a percebe nas mais diversas circunstâncias. Enfim, quanto mais ele percebe que a poesia está em todo lugar. Está onde estiver o ser humano. A poesia que não transforma o poeta transtorna o poeta.

Se é que existe, qual a principal mensagem deixada por sua poesia?
Não existe uma mensagem. São garrafas lançadas ao mar, guardanapos na mesa do bar...

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