História construída

O autor de A pedra e o tempo... adverte: bens patrimoniais não devem se tornar fósseis de si mesmos

por 13/09/2014 00:13
Beto Novaes/EM/D.A Press
None (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
Walter Sebastião

Leva a assinatura do arquiteto mineiro Flávio de Lemos Carsalade um livro especial: A pedra e o tempo – Arquitetura como patrimônio cultural (Editora UFMG). O texto denso, rigoroso e meditado oferece discussão filosófica valendo-se da fenomenologia e de temas caros ao pensamento e às práticas de preservação histórico-cultural.

“Quando se trata de patrimônio cultural e de sua proteção, a arquitetura costuma trazer as maiores polêmicas por ser uma arte utilitária que envolve o morar, com suas transformações constantes, e também a propriedade e o mercado imobiliário”, afirma o autor. “Uma segunda questão diz respeito a um dos grandes problemas epistemológicos do trato com o patrimônio: o restauro dos bens patrimoniais de arquitetura e outras artes (pintura, escultura) de maneira equivalente, o que acaba por criar graves distorções”, explica Flávio Carsalade.

Esses argumentos registram a especificidade da arquitetura, mas também restituem espessura reflexiva a questões postas pela instauração de um patrimônio cultural. Perguntas espinhosas cercam o tema. Por que tombar? O que preservar quando algo se torna patrimônio? Todas essas indagações remetem ao complexo jogo de passado, presente e futuro, incidindo sobre aspectos nada simples, como a vida nas cidades, o desenvolvimento e fundamentos civilizatórios.

 Tais questões são enfrentadas pelo autor não com considerações técnico-administrativas ou apenas estéticas, mas embasadas em fundamentação filosófica amparada na fenomenologia de base existencial, considerando a ordem imposta pelo ser humano a um mundo de acontecimentos e ações, derivada das relações vitais significativas criadas com o ambiente que o rodeia. Vivências marcadas pela tensão entre a impermanência e o desejo de permanecer.

Ex-presidente do Instituto Estadual do Patrimôninio Histórico e Artístico (Iepha), Flávio Carsalade é professor da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O livro nasceu de suas inquietações tanto como administrador público, ao ter que justificar à sociedade as decisões tomadas, quanto como projetista, por ter de fundamentar conceitual e teoricamente as opções adotadas.


O que a fenomenologia traz para a reflexão sobre o patrimônio edificado?
Salvo honrosas exceções de alguns autores, desde os seus primórdios, no século 19, o patrimônio sempre foi tratado do ponto de vista da matéria e do objeto, esquecendo-se de que, de fato, quem atribui valor e status de patrimônio é o sujeito: nenhum monumento nasce patrimônio ou assim se torna por si só. Por essa razão, o patrimônio nunca pode ser tratado unilateralmente sem forçosamente incluir a relação sujeito-objeto na sua abordagem. A fenomenologia se presta muito bem aos objetivos dessa análise por compreender que o objeto não existe autonomamente sem a presença do sujeito.

Você pode exemplificar esse conceito?
Ouro Preto é sempre um bom exemplo. Do lado do sujeito, reflete a diversidade de quem vivencia a cidade: o visitante, que se encanta por sua beleza naturalmente ou que já traz uma predisposição a esse encanto; ou o morador, que tem uma relação de amor e ódio com o patrimônio, na medida em que essa qualidade a distingue como cidade e lhe traz recursos financeiros ao mesmo tempo em que limita as transformações e o conforto contemporâneo – carros, antenas, etc. Ainda com relação ao sujeito, sabemos que os órgãos patrimoniais “barroquisaram” muitas edificações ecléticas que ali existiam para manter o “ar colonial” da cidade. Do ponto de vista do objeto, as relações morfológicas que se estabelecem entre a natureza, as montanhas e o casario, as transformações em cada casa e as maiores, as transformações urbanas e ocupação das montanhas, trazem insumos quanto às possibilidades de trato desse patrimônio que é histórico e vivo. Não há como congelar o passado e a história não é só o que passou, posto que ela é continuamente construída.

Como se dão tais questões em cidades modernas e contemporâneas?

O problema básico é o mesmo. A realidade é dinâmica e transformadora. Não há como deter a mudança, e o passado não está preso a um tempo cronologicamente anterior. Heidegger se refere ao passado como o vigor-de-ter-sido e Lina Bo Bardi como passado-presente, ou seja, nos interessa o potencial do passado como transformador do presente, o que aliás combina com a função social do patrimônio, que é a de utilizar a nossa herança para nos orientar, criar identidades e referências, formar o cidadão. Seja nas cidades modernas ou nas antigas, a questão não é como interromper o fluxo transformador da realidade, como infelizmente ocorre ainda em várias cidades brasileiras, mas como fazer com que essas transformações se deem de forma equilibrada, harmônica e respeitosa à pré-existência e a valores mais nobres. Nossa luta é para que os bens patrimoniais não se tornem fósseis de si mesmos, mas que exerçam sua força dentro da vida.

Afinal, por que tombar algo?

Em uma situação ideal onde o capital não fosse tão preponderante, ou onde o respeito pela qualidade de vida, pela memória ou o diálogo com a pré-existência não fosse tão desequilibrado, talvez não fosse necessário tombar. Mas temos que lembrar também que o ato de tombar é o reconhecimento social sobre a importância de um bem para a existência e continuidade dessa própria sociedade, daí sua necessidade simbólica. Na prática, o que temos visto, sem precisar ir muito longe, aqui mesmo em BH, é que o tombamento tem melhorado a qualidade das intervenções urbanas e dos novos edifícios, incorporando práticas mais respeitosas e estudos de adequação mais minuciosos, sem congelar a cidade ou colocar algumas de suas áreas em redomas inacessíveis.

Quando falamos em patrimônio, como está a situação de Minas Gerais? O que já foi feito e o que está por fazer?
Os políticos ainda não entenderam a força da cultura e do patrimônio como elementos de compreensão da realidade e de transformação social, colocando-os sempre como último capítulo de seus planos, quando deveria ser o primeiro, pois a cultura permite compreender os valores através dos quais as pessoas lidam com o mundo e constroem seu cotidiano. Se observarmos, os planos e mesmo a abordagem mais corriqueira entendem a cultura como diletantismo e lazer, ou seja, shows, exibições, etc., ou como patrimônio – nesse sentido, apartado do mundo e da realidade, congelado. Não que manifestações como shows não sejam cultura e que o patrimônio não deva ser protegido, mas cultura e patrimônio não se restringem a apenas isso. Há uma ampla gama de debates, de formação, de possibilidades de interação com o mundo e de transformação social, de desenvolvimento econômico que se viabilizam por meio de um entendimento mais largo do que seja cultura. Esse é o ponto fundamental. Minas Gerais tem um exemplo admirado por todo o Brasil: o ICMS Cultural, uma política formadora, de nível municipal, induzida pelo estado, de cidadania e criação de laços comunitários que se dá pelo incentivo à proteção dos bens patrimoniais locais. Mas isso não é percebido pelos governos centrais que vêm se sucedendo por aqui. A maior prova é o desdém pelo potencial desse instrumento como política pública transversal ou pela sistemática e ridícula dotação orçamentária, ano a ano, fruto de um entendimento estreito do patrimônio apenas como ônus e despesa.

A PEDRA E O TEMPO – ARQUITETURA COMO PATRIMÔNIO CULTURAL
•  De Flávio de Lemos Carsalade
•  Editora UFMG, 639 páginas, R$ 145

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