Almas traduzíveis

O escritor Márcio-André, em Poemas apócrifos de Paul Valéry, questiona a noção de autoria e lança luzes sobre as incertezas do processo criativo

por 30/08/2014 00:13
Arquivo Pessoal
Arquivo Pessoal (foto: Arquivo Pessoal)
André di Bernardi Batista Mendes

A editora carioca Confraria do Vento acaba de lançar Poemas apócrifos de Paul Valéry, poeta que foi uma das maiores referências literárias do século 20. Composto por 10 obras que o escritor, tradutor e artista visual Márcio-André – que ficou responsável pela tradução dos textos – afirma serem atribuídas ao poeta francês, o livro traz ao leitor um conjunto de textos misteriosos, em que autor e tradutor acabam confundindo-se. O leitor, como se estivesse num jogo, jogado num labirinto feito de só entradas, embarca num processo lúdico feito de vertigens, descobertas e dúvidas.

No ensaio introdutório, Márcio-André, que dedicou sete anos ao projeto, relata como tomou conhecimento, por indicação da neta de Valéry, dos poemas, que estavam guardados na Biblioteca Nacional da França. O material não poderia ser publicado devido à autoria não comprovada – posta em dúvida até por Márcio – , o que manteve a Editora Gallimard com o projeto engavetado.

Trata-se de uma antologia composta por poemas que abordam questões como a cidade, o estrangeiro, o tempo e suas demandas, as contingências, as intensidades e os mistérios do cosmos e da vida ordinária. Tudo isso a partir de diversos estilos e vozes, que apresentam um Valéry nada convencional. Márcio-André, no final das contas, não deixa de fazer também uma crítica contundente sobre as heranças da modernidade literária. Cabe ao leitor uma tarefa complicada, mas não menos saborosa, a de avaliar a obra para além da noção de autoria, evocando perguntas e inquietações. São armadilhas. Surgem questões: “Se a uma obra inédita fosse atribuído o nome de um grande autor, as pessoas mudariam sua opinião sobre ela?”.

Estes poemas, assim, abrem janelas e, no mínimo, ampliam possibilidades. São textos que têm a envergadura de pássaros, que sopram para todos os lados, indiferentes a conceitos e incertezas. São poemas que trazem, desde a raiz, uma duplicidade contínua, um dualismo luminoso. Márcio-André leva o crédito de ter encontrado palavras feitas de diamante ao encontrar/cavar poemas magicamente surgidos do nada. Ele explica na introdução, no seu “breve relato quase esclarecedor”: “Eis, portanto, estes ‘poema apócrifos’ que Valéry sonhou trazer para si e que eu agora, sonhando Valéry, trago para mim”.

Assim, diante deste turbilhão, e deixando de lado questões de autor e autoria, uma certeza fica certa, diante de poemas tão especiais. Porque a poesia é simplesmente isso, no definitivo: “Toda matéria é leve quando dita levemente”.

Estes poemas de Paul Valéry/Márcio-André (por que um não pode ser o outro?) nos ensinam a suportar a mecânica das coisas que poderiam ter sido, eles nos apontam os descaminhos das coisas que ainda não vieram, mas que esperam e crescem dentro dos sonhos, isso que pode estar nas nuvens, prestes, no mais alto plúmbeo.

Os poemas de Márcio-André/Paul Valéry (quantos poetas cabem num mesmo poema?) falam, transitam – siderados – dentro da nervura da noite, transitam dentro de uma engrenagem aparentemente inacessível. Mas existem portas, ainda que feitas de labirinto. São poemas que chegam de todos os lados, são poemas vagabundos, sem um rumo natural. Todas as setas desses poemas atingem todos os alvos.

Os poetas, lidando com fogos, apenas relatam estes acontecidos. Paul Valéry/Márcio-André tanto fizeram que conseguiram, pois fizeram, de modos distintos, no entanto iguais em termos de fogo e ousadia, fazer sobrar vento e ar, o ar necessário que existe, pronto, por aí, onde termina a ideia de finitude.

Os poetas, de um modo geral, afrontam, quando viver assusta. O enorme, as enormidades: “Há algo de galáxia e estrela nas teias de aranha”. Assim descobri, que a poesia exige: dos elétrons, das máquinas, das discrepâncias (não existe palavra feia), dos caminhos inversos. A poesia é a língua que usamos para “chegar ao idioma máximo, ao somatório de todo o intraduzível.”

“A única tarefa/razoável do poeta/é noticiar o fim do mundo.” Os poemas deste belíssimo livro são de uma beleza abissal. São poemas que vieram sabe-se lá de onde, de um futuro viável, de um antigo, de um fundo inferno, de um alto céu, carregados de forças que germinam e crescem dentro da gente, num lugar estranho, num lugar propício, num abismo que existe para ativar a máquina de fazer mudanças. Márcio-André, através de Paul Valéry, descobriu, no tempo certo, a pólvora, traduzida numa série de poemas carregados de eletricidade e fúria.

Márcio-André nasceu em 1978, no Rio de Janeiro, e vive desde 2011 em Santiago de Compostela. Com um trabalho que vai da poesia ao pensamento, passando pelo cinema, pela arte digital e pela performance, publicou livros de poesia e ensaios no Brasil e na Espanha, entre eles Intradoxos (2007) e Ensaios radioativos (2008). Com textos traduzidos para mais de 10 idiomas, fundou o coletivo, revista e editora Confraria do Vento. Realizou, em 2007, uma performance na cidade fantasma de Chernobyl.

O POETA

Paul Valéry nasceu em Sète, na França, em 1871. Publicou seu primeiro livro em 1907, aos 36 anos. É autor de uma vasta e original obra que abrange temas diversos, como arquitetura, música, literatura e dança. Sua obra poética é considerada uma das mais importantes da poesia francesa do século 20. Em seus ensaios, recusava a metafísica e os sistemas filosóficos. Valéry se empenhou na busca de um método destinado a fazer da criação poética uma obra de precisão. Morreu em 1945, em Paris.

 

POEMAS APÓCRIFOS
DE PAUL VALÉRY – traduzidos por
márcio-andré
Editora Confraria do Vento
180 páginas
R$ 59,90

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