Lágrimas de alegria e tristeza

Gênios em diferentes áreas do conhecimento, o matemático Artur Ávila e o humanista Nicolau Sevcenko honram o que um país tem de melhor

por 23/08/2014 00:13
Le Journal CNRS/Divulgação
Le Journal CNRS/Divulgação (foto: Le Journal CNRS/Divulgação)
Jacques Fux



Sempre fui um grande admirador da genialidade. Talvez mais que admirador: um adorador. Fascinava-me pelas histórias profanas e míticas dos maiores prodígios da humanidade. Adorava conhecer suas maravilhosas descobertas e suas mais ridículas peculiaridades. Inventaram a roda, as emocionantes leis da física, as inebriantes equações matemáticas, as comoventes narrativas... mas não tinham nem ideia de como cozinhar um arroz, de como resolver assuntos bancários, de como enfrentar a burocracia, de como viver os mais simples e prazerosos sentimentos. Seriam eles gênios e burros? Divinos e ridículos? Fábulas? Fabulistas? Fabulosos? Justos ocultos?

Durante a minha brevíssima passagem pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), me encantei por várias histórias. Histórias dos muitos gênios campeões mundiais das olimpíadas da matemática que andavam, como eu, pelos corredores daquele mágico ambiente, e que até eram capazes de dormir por lá, sonhando mundos e conjecturas impossíveis. Gênios precoces que deixavam suas famílias em busca da beleza da matemática. Da imponência da rainha das ciências. Da reverência total à suntuosidade da arte. E, nas muitas veredas enfeitiçadas do Impa, onde me perdia na contemplação e inteira ignorância, ouvi pela primeira vez sobre o misticismo da Medalha Fields e o prodígio garoto Artur Ávila.

Esse ainda jovem matemático já chamava a atenção dos eminentes mestres brasileiros. Ele não era o único: outros, muitos outros, já despertavam interesse e curiosidade dessa comunidade científica. Mas esse menino tinha algo de especial. Algo de fantástico. Algo mítico. Algo que eu só poderia imaginar, sonhar e escrever.

Anos depois dessa minha primeira queda diante da existência de um lugar onde mentes superiores e inocentes povoavam uma realidade factível, fui parar em Harvard. Desta vez, a minha estada não foi tão breve assim. E meu encanto e fascínio foram ainda maiores. Queria cursar todas as disciplinas, assistir a todas as palestras, conhecer todas as mentes brilhantes daquele lugar sagrado. E foi lá que assisti à minha primeira aula com o majestoso Nicolau Sevcenko.

Esse brilhante intelectual enfeitiçava todos pelo seu impressionante conhecimento, pela sua emoção diante da arte que conclamava e pelos seus risíveis trejeitos. Ele engasgava, de maneira caricatural, por conta de sua dislexia, mas também engasgava em razão do abalo que experimentava constantemente diante da beleza. Nunca me esquecerei de uma aula sobre Guimarães Rosa, quando o professor, no limiar do pranto e do encanto, apresentou pela primeira vez aos gringos “A terceira margem do rio”. Era emoção pura. Era a supremacia da literatura. Era uma apologia diante do sublime da arte. Ele se comovia constantemente ao falar da cultura e das histórias brasileiras.

Em 12 de agosto, foi divulgada oficialmente a notícia de que Artur Ávila havia recebido a Medalha Fields por seus belíssimos trabalhos. A emoção tomou conta de mim. Arrepiava-me ao pensar nessa incrível realização. Eu me deleitava em saber que um brasileiro havia tatuado seu nome na história da ciência. Na história da civilização. Na história da genialidade. Era um feito que devíamos todos gritar pelas ruas, esquecendo as mazelas políticas e a corrupção ativa. Estávamos vivendo um sonho. Sim, nós temos um gênio! Um gênio consagrado pelo maior prêmio de todos! Sim, a gente finalmente poderia se reconhecer nele, no sábio, no matemático, no erudito; e não tão somente no nosso depreciativo “jeitinho brasileiro”. Talvez o nosso “jeitinho” tivesse finalmente dado certo. Alegria. Encanto. Lágrimas.

Mas a alegria durou pouco. As lágrimas de euforia foram substituídas por lágrimas de desilusão. Em 13 de agosto, é divulgada a notícia do falecimento do grandioso professor de Harvard Nicolau Svecenko. Do admirável erudito que dançava durante as aulas ao se sensibilizar pela história (que ele próprio contava) das castanholas. Do magnífico intelectual que transformava em epopeia uma simples história de um acordeom. Do caricato mestre que brincava repetidamente com seu cabelo, artificial ou não, levando seus deslumbrados pupilos à reverência e ao lisonjeiro deboche. Um gênio que, muitos estimavam, tinha nos abandonado. Não é justo que no mesmo instante em que um surge sob o aplauso e a saudação de todo o mundo, o outro desapareça sob o pranto e lamento de todos.

Sábios

Uma lenda mística judaica ressoa nas minhas lágrimas. Um tanto adulterada, mas digna de alusão. Tento me confortar, inutilmente. Segundo algumas fontes semíticas, o mundo é sustentado pela existência de 36 justos. Os conhecidos tzadikim – sábios. Eles seriam as 36 pessoas humanas, dotadas de genialidade, bondade e frivolidade, responsáveis pelo equilíbrio metafísico da criação. Pela manutenção da beleza e da poesia da vida. Pelo arrebatamento diante da arte. Pela nossa capacidade de transcender da banalidade. Ode. Cântico. Magnetismo. Entretanto, não sei se são de fato 36 pessoas. Também não sei se elas existem de fato e se existe deveras algum mistério por trás da existência e da morte.

Acho, no entanto, que talvez um desses sábios tenha adquirido a maturidade intelectual e o reconhecimento internacional para liderar, a partir de agora, os novos sonhos e desejos dos muitos jovens e das novas promessas (como eu costumava me imaginar). Seja bem-vindo, Artur. E acho, também, que talvez seja por isso que um outro sábio, que já liderou os devaneios e as aspirações de outrem, tenha sido obrigado a transcender (só pode haver 36?). Nicolau: você nunca deixará de brilhar e de ser admirado, mas, a partir de agora, você nos acompanhará em uma nova dimensão, mais onírica e idealizada.

. Jacques Fux é escritor, autor do livro Antiterapias, ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura de 2013.

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