O mal que habita o mundo

Livro de contos de Evando Nascimento, Cantos profanos dá sequência ao projeto literário do ensaísta especializado em literatura e filosofia

por 02/08/2014 00:13
Joshua Lott/Reuters
Joshua Lott/Reuters (foto: Joshua Lott/Reuters)
João Paulo

Evando Nascimento faz parte de um grupo reduzido de ensaístas e estudiosos de literatura que também exercita a ficção de forma destacada. O autor de estudo sobre a obra de Clarice Lispector (Clarice Lispector: uma literatura pensante) é também um dos mais reconhecidos especialistas brasileiros na obras do pensador Jacques Derrida, de quem foi aluno em Paris. O escritor de ficção, por seu turno, é ao mesmo tempo um desdobramento do acadêmico e seu antípoda.

Assim como em Silviano Santiago, a obra ficcional de Evando Nascimento deixa entrever a erudição do professor, mas em nenhum momento é seu ponto de partida ou motivo de criação – nem mesmo para negá-lo. O escritor, íntegro, pede para ser avaliado por sua obra, não pela formação; pela criação, não pela teoria.

E o novo livro de ficção do autor, Cantos profanos (que se segue a Cantos do mundo  e Retrato desnatural) dá ainda mais consistência ao projeto autoral de Evando. O escritor domina o conto com força estilística, sobretudo pela capacidade de contenção, que não perde em momento algum a força. Como um domador de raios, são sempre momentos intensos, captados numa prosa enxuta, mas capaz de se servir de todos os recursos da linguagem e de suas possíveis vozes. Cada conto, de certa forma, inaugura um modo narrativo próprio, adequado ao que está sendo apresentado.

O nome do livro é revelador. Todas as narrativas tangenciam motivos subterrâneos, extremos, violentos, excessivos, além das convenções. A realidade profanada ganha em cada história uma expressão quase limítrofe, alternando a primeira pessoa (mais presente), o documento (carta e confissão) e o narrador onisciente; por vezes em meio ao espanto, outras com assustadora naturalidade. O extraordinário em Evando Nascimento, contudo, parece sempre brotar de uma realidade que a tudo assiste de forma impassível. Mais que social ou político, como em Rubem Fonseca, por exemplo, o mal para o escritor não precisa de justificativa para invadir a vida dos personagens. Ele existe.

Há de tudo no cenário profano das histórias: suicídio, pedofilia, sexo, violência, vingança, humilhação. Dividido em três partes, as histórias de Cantos profanos parecem se distribuir em seus propósitos. Em primeiro lugar os cantos; seguidos das profanações; e sintetizados numa narrativa ao mesmo tempo delirante e sistemática, “Os vestígios”, que encerra o volume. Como muitas histórias carregam intertextos e diálogos eruditos habilmente despistados, o autor completa o livro com uma “Tábua gratulatória”, na qual identifica suas dívidas.

A narrativa em si pode passar por uma mera provocação para se aproximar de determinados temas ou formas de contar a história. Mas é no habilíssimo jogo de mesclar os dois universos – o que dizer e como dizer –, que os contos de Evando se tornam exemplares e, em alguns momentos, de impressionante acabamento. Além disso, sempre muito perto do assustador – que se revela natural algumas vezes –, o contista parece ir alargando sua compreensão da realidade por meio de exemplos que sintetizam certa disposição contemporânea para a angústia e ansiedade em compreender o mundo à volta. O mal-estar das profanações.

No limite No primeiro conto, “Tentação do santo”, o leitor se depara com a confissão de um estupro, em que a violência está expressa menos no comportamento hediondo que na linguagem que naturaliza o crime. Em “Nada como um dia”, uma intelectual vive a rotina de sua distinção autoconferida até ser atropelada pelo desejo e pelo sexo. O conto “Terra à vista” é um experimento em ficção científica que brota do filme Gravidade, no qual o narrador tenta fazer um relato isento da experiência de abandono e solidão que vive em Marte, no ano 2150.

Cada história de Evando traz uma situação-limite, que exige algum tipo de solução. Por vezes, é o desfecho forte como um soco, como em “O banquete”, que escorrega da complacência inicial para o brutalismo do arremate; outras, a pura entrega aos prazeres, mas sem o peso da libertinagem, quase como um destino que atravessa a vida de um taxista, que gosta de homens e mulheres, e emenda sua narrativa em parágrafos que se encaixam como blocos estanques e sem historicidade. Como passageiros que embarcam em sua história.

O sentido religioso também está presente, seja nos temas – como o pecado e a culpa – seja nas formas de expressão, por vezes fabulares, confessionais e em alguns momentos epifânicas (como em “Noturno”), com uso ainda de aforismos e fragmentos que emulam a literatura sapiencial. Não falta nem mesmo um depoimento em primeira pessoa do próprio diabo em “Demo”.

O texto que encerra o livro, “Os vestígios”, explicita a marca mais intelectual e erudita do autor, com constantes referências à arte e ao saber, que vão de Shakespeare e Van Gogh ao filme O som ao redor e aos irmãos Taviani. Mas cuidado: são muitas vezes pistas falsas.

Evando Nascimento marca sua posição na prosa de invenção atual. Assim como suas histórias procuram sempre extrair o extraordinário do ordinário, sua arte mergulha no mundo dos sentimentos para figurar algo que mereça um canto, ainda que profano. Afinal, é a matéria de que somos feitos.

Cantos profanos
• De Evando Nascimento
• Biblioteca Azul
• 152 páginas, R$ 34,90

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