Racionais e Sebastião Salgado voltam a BH: expressões diferentes captam sentimento de ser brasileiro

Artistas renomados trazem show e exposição à capital; eventos distintos reforçam oportunidade ao público de se perceber como parte da efervescência cultural de um país

por João Paulo 26/07/2014 00:13
Não está na hora de ufanismo, menos ainda de cantar o Hino Nacional a capela, com aquele ímpeto de quem não parece entender bem as palavras. De volta à vida. E é nesses momentos que precisamos de referências para guiar os passos no dia a dia. Por trás do vira-latismo que invadiu a nação, as pessoas continuam fazendo seus trabalhos com carinho, caprichando no acabamento. Tornando a vida mais honesta e bonita.


Os filósofos não acertam sempre, mas alguns são porretas. Aristóteles, no século 5 a. C., já dizia que a vida se resume a poucas atitudes: nascer, trabalhar e morrer. O trabalho é o único momento sobre o qual temos o mínimo de controle. Para o pensador grego e para Freud, a única forma de dar sentido à vida é o trabalho criativo e prazeroso. Mesmo Marx, que denunciou o esvaziamento do sentido do labor na sociedade capitalista, sabia que o homem se define como um ser que trabalha.

Rodrigo Acedo/Divulgação
Mano Brown volta à capital mineira com show dos 25 anos de Racionais MC's (foto: Rodrigo Acedo/Divulgação)
Por isso, nos momentos comuns, o grande desafio é encontrar referências, gente que faz de sua relação com o mundo algo que torne a vida mais interessante. Costumamos dar ao artista o condão de resolver por nós o trajeto até a transcendência. As grandes obras e atitudes, de certa forma, nos justificam, contribuem para o sentido oceânico de participar da humanidade.

Para quem só vê problemas no país, é só abrir os olhos e ouvidos: a beleza está logo ali. Por perto, nesse momento, temos à disposição a mostra de fotografias Genesis, de Sebastião Salgado, e o anúncio do show de 25 anos dos Racionais MCs, em 22 de agosto, ambos em Belo Horizonte. Cada um desses momentos pode nos ligar ao sentimento pouco definível de ser brasileiro. Salgado capta imagens nas quais nos reconhecemos; Mano Brown e companhia estão compondo a trilha de um Brasil que não tinha voz.

PRETO E BRANCO

A mostra de Sebastião Salgado, Genesis, é um momento-chave no nosso tempo. Durante oito anos, o fotógrafo percorreu o planeta em busca de sítios intocados. Mais do que a beleza de paisagens, animais e povos vivendo uma eternidade sem termo, Salgado foi capaz de flagrar o tempo. Suas imagens em preto e branco têm a força daquilo que sobreviveu ao empenho do homem em destruir o mundo e, num retorno quase mágico, nos alerta agora para nossa tíbia chance de sobrevivência.

Sebastião Salgado, em sua carreira de fotógrafo, nunca deixou de ser repórter. Seus trabalhos, que depois se desdobram em livros e mostras, são na verdade reportagens visuais sobre os grandes dilemas do nosso tempo. Compôs o retrato da América, que fez o Brasil voltar o rosto para seus vizinhos; foi atrás dos povos em êxodo pelo mundo, tocados como gado pela violência e pela ganância; mostrou os ofícios que definem os trabalhadores em todos os lugares.

O fotógrafo tem sido ainda corajoso parceiro de projetos políticos que envolvem sem-terras, exilados, doentes, migrantes. Chegou a ser acusado de usar a pobreza em seus trabalhos com objetivos estéticos. Respondeu sempre com obras íntegras e comportamento político independente, embora comprometido com causas, não com ideologias.

 

AFP PHOTO / ROSLAN RAHMAN
Sebastião Salgado traz nova etapa da mostra 'Genesis' ao Palácio das Artes (foto: AFP PHOTO / ROSLAN RAHMAN )
Sua ligação com as questões que reporta em suas fotografias e livros ganha tradução impressionante no projeto de reflorestamento da fazenda de sua família, em Aimorés, Minas Gerais. Sebastião Salgado criou o Instituto Terra e vem trabalhando para reverter a ação do homem sobre a mata atlântica daquela região. As árvores estão sendo replantadas aos milhões, os animais silvestres voltaram a habitar o território e até cursos d’água recuperam sua limpidez e força.

A exposição em cartaz no Palácio das Artes é uma oportunidade para absorver com os olhos o planeta e seus habitantes. Sebastião Salgado, cuidadosamente, fotografou aves, plantas, jacarés, montanhas, populações, geleiras e outros portentos da natureza que parecem esperar do homem apenas a grandeza da contemplação muda. O espectador – e essa parece ser uma experiência universal – sente-se ao mesmo tempo grande, por participar do espetáculo da vida, e mínimo, ao ver sua insignificância frente ao esplendor da criação. Uns chamam isso de religião. Outros, de política.

BRANCOS E PRETOS

Se Sebastião Salgado nos dá a visualidade extrema da humanidade, a música dos Racionais MCs nos puxa para a dimensão social da vida que nos observa da “periferia” para o “centro”. O grupo paulista de rap completa 25 anos como a última grande novidade da cultura brasileira. O que Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay vêm fazendo só se compara, no campo da cultura popular, ao que foi realizado pela geração da chamada Música Popular Brasileira, surgida nos anos 1960 com os festivais.

É curioso que tenha sido Chico Buarque, figura de proa da MPB, quem primeiro detectou no rap uma novidade que vinha passando ao largo do cânone ditado pelo mercado. Chico, filho de Sérgio Buarque de Hollanda, conhece bem a dimensão de cordialidade da cultura brasileira, identificada no clássico Raízes do Brasil, de 1936. Trata-se de uma tradição que põe o sentimento à frente da razão, o afeto acima da lei, as convenções sobre a universalidade da norma. Os Racionais são, assumidamente, anticordiais.

Tem o momento da paz e a hora do conflito. Tem a arte que apazigua e a que enerva. Há a política da conciliação e a do confronto. Os Racionais representam o lado da afirmação, do conflito, da denúncia. Em suas canções, o universo é pobre, as pessoas sofrem discriminação, são negros, apanham da polícia. Mas reagem. Além da arte, que afronta os bons modos, há uma decisão consciente em arregimentar sua turma, apontar os inimigos, construir a reação. Não há nada mais distante dos Racionais MCs que a piedosa caridade cristã, a distribuir seus restos como dádivas e diminuir o outro na figura do carente. Carente é o cacete.

A música dos Racionais, sem negar o internacionalismo que se alimenta da música americana, tem sabedoria que brota dos ritmos brasileiros, com Tim e Bens e tais. Mano Brown, quando todos se acostumaram com sua recusa do sistema, foi capaz de driblar as barreiras e invadir a festa. É hoje uma referência cultural incontornável, que está onde está para incomodar enquanto o mal-estar for uma atitude de protesto. A beleza de suas letras e a força das batidas são o veículo de uma política que se realiza como arte. Ou o contrário. Os Racionais são preto no branco.

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