Visita Edwin Dorn ao Brasil enseja paralelo entre a luta por direitos civis nos EUA e Brasil

por Silvia Lorenso 19/07/2014 08:00
José Nicolau/O Cruzeiro/EM - 2/10/63
(foto: José Nicolau/O Cruzeiro/EM - 2/10/63)
Em 2 de julho de 1964, o então presidente dos Estados Unidos Lyndon B. Johnson, assinou o Ato dos Direitos Civis, que proibia a discriminação baseada na raça, cor, religião, sexo ou nacionalidade, ato este que entrou para a história do país como a mais importante conquista legislativa dos direitos civis após a abolição da escravidão. No mês do cinquentenário do Ato, desembarca em Belo Horizonte uma autoridade texana no assunto diversidade e políticas públicas, o cientista político, diretor da Kattering Foundation e professor da Universidade do Texas (UT) Edwin Dorn. Dorn quer entender como o Brasil tem enfrentado o problema da discriminação racial, a partir do diálogo com jovens negros da periferia e com integrantes locais do movimento social negro, responsáveis pela organização da Segunda Marcha Nacional Contra o Genocídio da Juventude Negra, marcada para o dia 22 de agosto.

Em Belo Horizonte, Dorn visitou o Aglomerado Santa Lúcia, na Região Centro-Sul. Sua intenção foi entender, na prática, o que estão dizendo os organizadores da Marcha Contra o Genocídio da Juventude Negra ao afirmarem que o jovem negro morador de favelas é alvo preferencial das mortes por homicídio ou por violência policial. Como ex-secretário de Estado da Defesa no governo Clinton e ex-diretor da Escola de Administração Pública Lyndon B. Johnson, na UT, em Austin, Dorn já teve acesso suficiente a brasileiros brancos, pertencentes à segunda ou terceira geração com formação universitária e privilegiados economicamente. Agora, ele quer aprender como vive e resiste, hoje, essa geração de jovens negros moradores da periferia, os quais representam a primeira geração a cursar o ensino universitário.

Moradora do Aglomerado Santa Lúcia, conheci Dorn em 2006, quando era intercambista da Fulbright, na Universidade do Texas, onde leciona o professor. Sete anos depois, concluí o doutorado no Departamento de Português e Espanhol dessa universidade. Quando nos encontramos, em uma atividade acadêmica, o professor ficou bastante interessado em saber minha posição a respeito das relações raciais no meu país. Na época, disse que era a primeira vez que ele tinha a oportunidade de conversar com uma brasileira afrodescendente. Além de mim, havia mais 10 negros brasileiros por lá. Fazíamos parte da primeira geração de pós-graduandos com mobilidade internacional, na era das ações afirmativas (no Brasil). E todos, sem exceção, exercíamos atividades de organização e liderança política nas nossas comunidades de origem. Ou seja, éramos membros de grupos que, de uma forma ou de outra, estavam realizando um trabalho de direitos civis, nos moldes do que Dorn conhecera quando jovem: reuniões, marchas e outros protestos diversos, revisão e proposição de documentos etc. Em função dessa vinda de Dorn ao Brasil, procuro resgatar e fazer um paralelo entre a luta por direitos civis nos Estados Unidos e no Brasil, tendo como entrada a experiência vivida por Dorn e a vivenciada por mim em Belo Horizonte.

Ano passado, os Estados Unidos comemoraram o cinquentenário do discurso “Eu tenho um sonho”, proferido por Martin Luther King como ápice da memorável Marcha Nacional pelo direito ao trabalho e por liberdade, em Washington, no dia 28 de agosto de 1963. Edwin Dorn fazia parte da última geração de jovens negros que completaram seus estudos no ensino primário e secundário em escolas segregadas, e a entrada na universidade (UT) se deu apenas uma ou duas semanas depois da marcha. Seu primeiro semestre como estudante de graduação coincidiu, portanto, com sua primeira experiência no novo cenário da integração racial, implementada sob os auspícios da lei acima citada. Em um universo de mais de 20 mil discentes, apenas 300 eram afro-americanos. Como se tratava de um processo novo, lento e gradual, Dorn relembra eufemística e ironicamente que seu encontro com alguns alunos e professores brancos “não era uniformemente positivo”.

Até aquele momento, ele vivia quase que exclusivamente só com outros negros, na comunidade, encurralados pelas leis Jim Crow impostas pelos governos municipais e estaduais. No Sul, relembra ele, “a gente crescia em um ambiente no qual as coisas eram do jeito que eram e pronto. Por exemplo, íamos à escola que estava disponível na vizinhança e nossas ambições eram definidas a partir desse limite. Você podia desejar ir para a faculdade, mas havia certas profissões que estavam fechadas para você”. Outro ponto em comum eram as marcas da segregação que cada um carregava em forma de exemplos de discriminação. Dorn lembra que, aos 5 anos, foi informado de que não podia beber água no bebedouro exclusivo para brancos. Embora Brasil e Estados Unidos tenham um histórico econômico e político bastante diferenciado, há mais semelhanças que diferenças em se tratando da experiência de exclusão de afro-americanos e afro-brasileiros.

Pertencimento

Uma significativa parcela da população negra, que vive hoje nas favelas e busca formação acadêmica, depara-se com um ambiente que ainda não está totalmente preparado para a potencialidade da diversidade, especialmente racial e de classe. Lembro-me, por exemplo, do dia em que fui praticamente apreendida pelos policiais nas ruas da minha comunidade, quando caminhava com meu laptop na bolsa a caminho de casa. Policiais do 22º Batalhão revistaram minha bolsa e, ao ver o computador, pediram a nota fiscal e não me liberaram da “categoria” de suspeita até que vasculhassem meus e-mails à procura da nota. O computador havia sido comprado on-line no site da Apple. Também do dia em que, recém-matriculada em um dos melhores cursos de inglês na Zona Sul da cidade, fui confundida com a babá que estava buscando o filho da patroa. De modo que é exatamente essa experiência de viver situações marcadas pela cor da pele, pelo pertencimento racial, seja no Brasil ou nos Estados Unidos, que motiva a vinda do professor Dorn ao país. Como pode dois países tão diferentes apresentarem resultados tão semelhantes em termos de desigualdade racial e discriminação?

Sobre o Ato dos Direitos Civis, Dorn defende que sua importância se divide em um caráter substantivo e outro moral. Do ponto de vista substantivo, ele teria eliminado a discriminação e a segregação legal que impediam a população negra de ter mais mobilidade econômica. A política do “separado, mas iguais” previa que as escolas nas vizinhanças de maior poder aquisitivo utilizassem os impostos para melhoras exclusivamente dos seus equipamentos públicos, o que, obviamente, deixava as escolas nas vizinhanças mais pobres sobrevivendo praticamente sem recursos, perpetuando, assim, a desigualdade racial e social. Moralmente, a mensagem que o ato disseminou foi a de que a discriminação é errada e ilegal, em todos os sentidos. Embora seja um marco legislativo bastante relevante, Dorn acredita que o ato falhou em uma importante missão: atacar a histórica distância econômica entre negros e brancos que foi estabelecida diante do acúmulo dos benefícios e privilégios vividos pelos brancos, em forma de tratamento preferencial.

A casa própria, por exemplo, é um dos grandes recursos de riqueza das famílias, pois é algo que pode ser repassado de uma geração a outra. Segundo Dorn, até poucas décadas atrás, diversos bancos não concediam empréstimos para os negros que queriam comprar sua propriedade. Ainda hoje, os afro-americanos encontram mais dificuldade que os brancos para assegurar empréstimos para o financiamento da casa própria, acumular bens que possam ser passados para as próximas gerações e vislumbrar mobilidade da mesma maneira como o fazem os brancos.

Dorn relembra que, durante os anos mais difíceis, no início da dessegregação, o discurso de Martin Luther King lhe serviu de encorajamento para continuar. Ele ressalta, no entanto, que o discurso de King tem duas partes. A segunda ficou mais conhecida e celebrada (o sonho de que um dia as pessoas sejam tratadas pelo caráter, e não pelo tom da pele), a ponto de a primeira ser praticamente relegada ao acaso. Dorn nos lembra que, na primeira parte, King acusa o país de ser uma nação falida. De ter falhado diante da promessa de que haveria justiça para todos e todas. A nação teria assinado uma nota promissória dos direitos igualitários, mas esqueceu-se de pagá-la.

Há sete anos sou convidada para falar sobre o Brasil aos alunos do seu curso “Raça e Políticas Públicas”, na Faculdade de Administração Pública que leva o nome do presidente Lyndon B. Johnson e que cuida de todo o arquivo da sua gestão. A primeira reação dos alunos é confirmar a surpresa: alguns interagem com alguma frequência e familiaridade com colegas e amigos brasileiros, mas nunca interagiram com negros brasileiros na universidade. Outros não entendem os motivos que, em tese, levariam mais de 50% da população que se autodeclara afrodescendente a não promover marchas, protestos, pressionar por leis para alterar o quadro de exclusão social e econômica recorrentemente apresentados pelos institutos de pesquisa. Costuma, ainda, ocorrer uma confusão geral em sala de aula quando falo da equação brancos + ensino médio particular = vaga nas “Yvy Leagues” brasileiras (ou universidades mais prestigiosas e públicas) versus negros + ensino público = cursos e faculdades e universidades de menor prestígio e majoritariamente particulares, ou seja, pagas, com pouco foco em pesquisa e, consequentemente, com pouco ou quase nenhum peso na produção do conhecimento.


. Silvia Lorenso é professora, doutora em literatura e cultura afro-brasileira pela Universidade do Texas e pós-doutoranda em estudos latino-americanos e diáspora africana na Universidade da Carolina da Norte (EUA).

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