Inventar a vida

Festival de Inverno da UFMG convida a população a mudar seu relacionamento com a universidade a partir de iniciativas políticas e técnicas que redimensionam o ato de habitar a cidade e o mundo

por 19/07/2014 00:13
Curadoria Festival de Inverno UFMG/Divulgação
Curadoria Festival de Inverno UFMG/Divulgação (foto: Curadoria Festival de Inverno UFMG/Divulgação)
César Guimarães *



Ao completar a trilogia em torno do Bem comum, iniciada em 2012, esta 46ª edição do Festival de Inverno da UFMG busca implicar ainda mais a universidade nos dilemas que atravessam os nossos modos de vida em comum, fraturados por persistentes processos de exclusão e de produção da desigualdade – pensemos no acesso à educação e nos problemas da moradia urbana – e por outros que se renovam tragicamente nos dias de hoje, como é o caso do genocídio que atinge as populações indígenas. Tradicionalmente identificado com o universo das artes e da produção cultural, podemos indagar por que um festival de inverno se preocuparia também com tais temas.

Para nós, este festival oferece modos possíveis de a universidade se engajar na invenção de outras práticas e imaginários para a vida em comum, oferecendo-se, ela mesma, como um território experimental aberto às práticas e saberes que não exclusivamente aqueles dos seus professores, estudantes, funcionários e pesquisadores.

Como a universidade poderia romper as cercas e grades que a separam da sua vizinhança e se inserir nas diversas iniciativas que atualmente buscam reinventar os espaços públicos? Trata-se, em pequena escala, de inventar a reciprocidade que a universidade deve à comunidade à qual pertence, mas da qual ela própria tantas vezes se defende e se protege.

Queremos, nesses poucos dias, que o câmpus se torne um espaço tomado por ocupações livres e democráticas dos espaços públicos, povoado por formas de sociabilidade e de conhecimento irrigadas pelas múltiplas manifestações da alteridade, em especial aquelas provenientes das culturas indígenas, afrodescendentes e urbanas.

Nessa semana do festival, o câmpus abrigará hortas comunitárias e feiras para trocas de mudas e sementes; banquetes públicos com os sabores dos Reinados do Rosário, das aldeias, dos quilombos e dos terreiros; espaços percorridos por bicicletas e por transporte público de tarifa zero; matas para trilhas e para os rituais de culto às divindades; lugares organizados pela coleta seletiva do lixo e pela reciclagem; parques públicos para as muitas formas de lazer e diversão; e palcos livres para diversas apresentações artísticas.

Ao promover tais atividades, queremos propiciar o surgimento de iniciativas que alterem o uso que habitualmente damos ao câmpus. Para além do seu uso funcional e cotidiano, ele não poderia, por exemplo, abrigar praças, parques, ciclovias e lugares diversificados para os esportes e o lazer, oferecidos à população da cidade? Além disso, não caberia à universidade pública expandir a fruição das invenções da arte e do pensamento como uma alternativa ao mercado de consumo dos produtos culturais, guiado pela lógica da lucro e da segmentação calculada de seus públicos?

Queremos que o câmpus se torne verdadeiramente um território habitado por diversos ensaios de outra vida em comum, povoado por múltiplas vozes, cantos, línguas e discursos; um espaço pluriétnico e livre, capaz de acolher a diversidade dos modos de existir e de pensar, na contracorrente do que hoje vive nosso país. Sabemos muito bem o quanto o desenvolvimento desenfreado das monoculturas e da industrialização (com a destruição irreparável que as acompanha) – submetidas às epistemes excludentes que norteiam os rumos da ciência e da tecnologia – tem exterminado a diversidade dos modos de vida e de pensamento entre nós.

Gostaríamos, portanto, de que nesse território transformado se fizessem ouvir as vozes e os desejos daqueles que são, cotidianamente, desalojados dos seus lugares de pertencimento, seja nas florestas, no campo e nas cidades. Daí o lugar central que o festival concedeu às ocupações: indígenas, quilombolas e urbanas. Elas são, verdadeiramente, criações que procuram inventar outra vida em comum e que nos inspiram a criar novos modos de habitar e povoar um território.

Podemos começar por questionar as relações entre o câmpus, a cidade, o campo e a floresta, para imaginar novas alianças e vizinhanças entre esses espaços e os seus habitantes. Essa é a motivação principal deste Festival de Inverno da UFMG.

* Texto produzido por César Guimarães, Anna Karina Castanheira, Guto Borges, Luciana de Oliveira, Pedrina de Lourdes Santos, Roberto Andrés, Tonico Benites e Wellington Cançado, da coordenação e curadoria do 46º Festival de Inverno da UFMG.

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