A vez da igualdade

Ricos estão quebrando o mundo, trocando a produção pela financeirização

por João Paulo 17/05/2014 00:13
Charles Platiau/Reuters
No livro Capital no Século 21, Thomas Pikety afirma que concentração de renda vai aumentar cada vez mais (foto: Charles Platiau/Reuters)

Há muitas formas de classificar as atitudes políticas. A mais conhecida delas é a que divide o universo de ações e ideias entre direita e esquerda. Mesmo estando em baixa, o par clássico ajuda a compreender posturas divergentes em matéria de leitura e atitude frente ao mundo. Uma boa maneira de tornar a distinção mais compreensível é associar a ela outras noções mais operacionais. Assim, a esquerda passou a ser associada à igualdade e a direita à liberdade. Como tanto liberdade quanto igualdade são necessárias para que a humanidade se realize, o debate se deslocou para o campo da urgência: quem deveria vir em primeiro lugar?

Para os partidários da liberdade, há algo de virtuoso em garantir seu domínio, seja nos negócios econômicos ou políticos, que se espalharia para todos os campos da vida social. Em outras palavras, dadas as condições de liberdade, tanto o mundo material quanto simbólico só teriam a ganhar. O melhor do homem é sempre resultado do mais livre dos cenários. A tradução mais conhecida desse teorema social é o liberalismo econômico, que dá ao mercado, com sua força interna de competição conspícua, a potência de se desenvolver quanto maior for a disputa entre as pessoas.

Para os seguidores do igualitarismo, é preciso colocar os valores à frente da ambição, a ética na proa das atitudes que envolvem os homens. Quem acredita que as pessoas nasceram para ser iguais, defende que sejam dadas a todos as mesmas condições básicas. Não se trata de frear a diferença, mas de garantir e equidade de condições de partida. Podemos ser mais inteligentes, capazes, fortes e competentes, mas nunca seremos mais gente que os outros homens e mulheres. Se entre os liberais o território mais exemplar é a economia, entre os igualitários é a política.

Essas observações talvez ajudem a clarear um pouco o panorama no qual estamos metidos até o pescoço e, por isso, nem sempre percebido com muita clareza. É preciso dar ao liberalismo o que é dele, e resgatar dos partidários da igualdade a disposição para lutar por suas ideias. A falência do Estado de bem-estar social na Europa (não chegamos a experimentá-lo no Brasil) é uma prova de que o mercado não tem sensibilidade social a não ser de forma limitada (para poucos, o que explica a xenofobia) e em momentos de crescimento (que permite o vazamento da riqueza para políticas compensatórias fora do mercado).

Como vivemos uma crise internacional, a tendência é exatamente regressiva, de retirar ganhos sociais e cortar benefícios. O que parece que não funciona mais é o receituário que empurrava para o futuro a divisão da riqueza, seja na forma de distribuição de renda, seja na de serviços de qualidade, ou ainda na política protecionista do trabalho e da previdência. Sem o horizonte do Estado de bem-estar social, o que nos sobra é retomar as lutas pela expansão de direitos.

Essa situação mostra que, depois do ciclo do liberalismo, é chegado o momento universal da busca da igualdade social. Dois livros lançados recentemente comprovam essa urgência. Em O capital no século 21, o francês Thomas Piketty alerta para a necessidade de desconcentrar a renda. A partir da análise dos impostos pagos pelo cidadão, ele provou que a renda, ao contrário do que sempre defenderam os liberais, está em franca concentração, depois de uma fase áurea que não mais se repetirá. Os ricos estão cada vez mais ricos e a sociedade cada vez pior. Para quase todos. A saída é a distribuição de renda e a taxação da herança, associada a políticas de fundo social. Os ricos estão quebrando o mundo, trocando a produção pela financeirização. Não se trata de ameaças, mas de números, preto no branco.

Em outra seara, aparentemente distante da economia, o neurocientista americano Carol Hart, no excelente Um preço muito alto, revoluciona a visão tradicional sobre as drogas e suas políticas de combate. Ele mostra, com dados sociais e experimentos científicos (sem falar da própria experiência de vida), como a droga é uma questão de pobreza e de falta de oportunidades. O grande problema do mundo não é o tráfico de drogas, mas a miséria, a discriminação e o preconceito. Professor da Universidade de Columbia, o neurocientista cobra políticas públicas, e não a repressão. Para os que criticam as ações afirmativas, ele se apresenta como exemplo: sem as cotas, Hart seria mais uma vítima das drogas, como muitos de seus amigos. Com as oportunidades que lhe foram dadas, se tornou um cidadão.

O debate entre igualdade e liberdade, na verdade, deveria ser equilibrado pela terceira das bandeiras dos revolucionários do século 18: a fraternidade. Podemos ser livres em alguns momentos, e até mais iguais em outros. Mas só seremos gente de verdade no horizonte da fraternidade.

MAIS SOBRE PENSAR