Escritor colombiano Gabriel García Márquez ampliou a arte do romance

Falecido na semana passada, 'Gabo' abarcou a totalidade humana e fundamentou a crítica ao poder

por João Paulo 26/04/2014 08:00
Joaquin Sarmiento/AFP
(foto: Joaquin Sarmiento/AFP)
Algum tempo depois da morte de Gabriel García Márquez, diante das centenas de páginas escritas sobre ele em todo o mundo, o leitor haveria de recordar o dia em que foi apresentado a um livro capaz de mudar sua vida.

Essa parece ser uma situação comum entre os milhares de leitores de Cem anos de solidão. Assim como acontece com o 11 de setembro ou com a morte de Elis Regina, todos parecem se lembrar de onde estavam e o que sentiram na época da primeira leitura do romance.

Essa é apenas uma das sensações que cercam a criação do escritor. Além do impacto emocional e da marca na memória de afetos, García Márquez pode ter criado uma região pessoal entre ele e o leitor, que se traduz numa espécie de familiaridade ou compartilhamento. Como se as palavras brotassem da realidade, dirigidas de forma peculiar a apenas um leitor, que se revelou, com o tempo, representar a experiência de milhões em todo o mundo.

Mas a gentileza do estilo é apenas uma das muitas singularidades do romancista. Lido hoje, com a distância de décadas e depois do reconhecimento mundial, a obra do autor de O outono do patriarca carrega algumas características que se revelam quase uma sequência de paradoxos. O primeiro deles é o que parece opor inteligência e sensibilidade, o discernimento e a intuição.

Gabriel García Márquez agradou a todo tipo de leitor. Como Machado de Assis propõe na abertura de suas Memórias póstumas de Brás Cubas, há duas grandes colunas de opinião, a dos graves e a dos frívolos. E ele supunha que seu livro de além-túmulo teria o condão de desagradar aos dois lados. Gabo fez exatamente o contrário: deu aos graves a certeza de que tinham em mãos algo de novo e desafiador, e aos frívolos a certeza de uma história verdadeiramente encantadora. E estava certo nas duas apostas.

Temos a canhestra certeza, que quase sempre se revela equivocada, de que a inteligência e a emoção andam em vias separadas. García Márquez, sem qualquer teoria (como romancista, ele sempre mostra, não perde tempo em anunciar o que vai dizer), desdiz essa raia absurda que cinde o engenho humano. Ele é um grande escritor exatamente pela capacidade de juntar a mão esquerda e a direita para criar um som peculiar, que não existiria sem essa união.

O escritor mais celebrado, tudo indica, é o contador de histórias fabuloso, capaz de criar uma nova cosmologia, de parir genealogias, de encantar com batalhas, ciúmes e outros portentos menores. No entanto, em García Márquez há uma inteligência linguística quase sublime em sua realização única, que inaugura novos modos de expressão, cria estruturas perfeitas, domina o ritmo da narrativa. O inventor de mundos e passados e o artífice da linguagem se igualam.

A técnica do escritor, que se tentou resumir no rótulo de realismo mágico, na verdade se realiza como uma busca destemida da totalidade. Em García Márquez, como propôs seu desafeto, o romancista peruano Mario Vargas Llosa (honesto o suficiente para escrever o melhor estudo já publicado sobre o colega colombiano), há uma soma do real objetivo – com sua história familiar, hierarquias sociais, presença de classes e destinos individuais – com o real imaginário, que funde o mágico, o milagroso, o mítico e o fantástico.

O que surpreende é que, para realizar essa tarefa aparentemente impossível, de figurar o mundo num recanto e dar universalidade à aldeia, passando sempre pelo coração do homem em situação e do indivíduo em sua centúria de solidão, García Márquez precisou inventar um jeito de nomear o mundo. Para os que se perdem em meio à pletora de maravilhas do entrecho e da linguagem, fica escondido na sombra o esforço para tornar possível o milagre da expressão.

Em seu O amor nos tempos do cólera, logo no primeiro parágrafo o autor fala da morte de um homem que se mata com veneno para se ver livre dos tormentos da memória. Era o adversário mais compassivo de partidas de xadrez do narrador. O romance, que é um elogio da permanência da lembrança, parece dar uma pista do jogo que se segue. Gabo é um cuidadoso seguidor das regras da narração. Entre elas, a de não ir depressa demais, mas sem deixar de manter o leitor interessado no desfecho.

Há nos romances do escritor, como nas partidas de xadrez de grandes mestres ou nas raquetadas de Roger Federer, um senso de temporalidade que compassa o tempo, diminui a pressa, antevê os lances com antecipação não apenas para dar o xeque ou matar o ponto. Cada jogada é ao mesmo tempo necessária e preparatória. Sem ela, a brincadeira perde o encanto, mesmo que pareça existir apenas para adiar a consagração do instante.

Os romances são sempre tocados por essa condução lúdica, ainda que de certa forma suplantada pela força da narração, pela aventura da história ou pela revelação do humano. Além disso, a construção é sempre equilibrada por um dedicado esforço de pesquisa, como no bom jornalismo, que parece sempre deixar implícito que há muito trabalho por trás de cada palavra para que ela surja como necessária.

Gabo sempre fez questão de relevar a importância do jornalismo em sua obra e chegou a publicar grandes reportagens e reuniões de textos e críticas saídas em periódicos. Fundou com o irmão, em Cartagena, onde militou como repórter na juventude, uma fundação dedicada a incentivar o jornalismo, que ainda hoje atrai jovens de todo o mundo. Não se trata de um benefício condescendente ao ofício. Sua obra de ficcionista deve muito ao trabalho do profissional de imprensa que um dia foi: o apego ao fato, às pessoas, às verdades. O bom romance é uma grande reportagem sobre fatos que se esqueceram de acontecer.

Além disso, o criador deve ao jornalismo a mais humilde das disposições de alma do artista: a vontade de ser lido e compreendido. Arte iluminista por excelência, o jornalismo tem como tarefa política dar às pessoas instrumentos para que tomem conta de sua vida e melhorem o mundo na medida de suas parcas qualidades. Para isso, precisa acreditar que todos são iguais e podem saber tudo.

Um jornalismo para poucos é quase uma contradição, já que ele existe exatamente para reafirmar a comunidade de iguais. Um romancista poucas vezes pensa assim, tendo uma queda para o happy few de Sthendal. Ao escrever para todos – e, o que é mais difícil, alcançá-los –, García Márquez realizou o intento dialético de tornar quantidade em qualidade.

Muitos que tentaram imitá-lo perderam a mão, destacando o populismo e exotismo que não fazem parte de sua obra. Gabo, além de criar sua genealogia, foi capaz de elidir a descendência. Os dias de sua arte foram os dias de sua vida. Inclusive em suas demasias, como na política.

Contra o poder Um dos aspectos que mais chamam a atenção na obra do escritor, e que de certa forma desliza para a vida, é a relação com a política. Há dois julgamentos imediatos: o de que o romancista foi um crítico do poder e o que aponta sua ligação com a esquerda, sobretudo sua amizade com Fidel Castro. O que se observa é que eles acabam por se justapor, como se a vida negasse a obra.

O anacronismo é um pecado mortal em história. Por meio dele avaliam-se com critérios posteriores atitudes que se relacionam com outro universo de valores. A ligação com Castro, por exemplo, tem peso diferenciado no correr da história. Torna-se cada vez mais problemática com o passar do tempo, quanto mais o governo cubano se aproxima de atitudes condenáveis em termos políticos e relacionados aos direitos humanos.

Em literatura, o risco é ainda maior. Muitos autores foram condenados por suas posições ideológicas, sem consideração à qualidade de seu trabalho estético. É o caso, por exemplo, de Jorge Luis Borges, com sua identificação com o pensamento conservador e defesa episódica de ditadores, como Pinochet. Borges, possivelmente, perdeu o Nobel em razão da ideologia, embora tenha sido o maior escritor do mundo em boa parte de sua vida.

Com Márquez, há uma dupla inscrição da questão política. Ser contra o poder, sobretudo o imperialismo, faz parte não apenas de sua ética, mas do núcleo de sua ficção e visão de mundo. A figura do ditador é muito mais que um tema para o romancista, é uma obsessão. E é por entender tanto de ditadores e seus epígonos que García Márquez se dedicou a tentar decifrar a solidão do poder.

Em entrevista a Régis Debray, Fidel chegou a dizer que desconfiava da “firmeza revolucionária do escritor colombiano”. Ele estava certo. O romancista tinha a sedução do patriarca e o nojo do poder, atitudes que dificilmente geram bons revolucionários. García Márquez, mesmo errado na história em alguns momentos, parece que acertou na arte.

A comparação entre Borges e Márquez diz muito da América Latina. Os dois escritores, com armas distintas e ideologias opostas, deram maior dimensão ao continente no concerto mundial. Borges mostrou que a inteligência e a erudição do Sul eram imbatíveis; Gabo, que a literatura de invenção não havia acabado com o realismo do século 19. No entanto, por uma dessas reviravoltas do espírito, estamos condenados a entender a arte suprema de Borges em meio a seu engenho, e a decifrar a inteligência espantosa de Márquez em seus entrechos maravilhosos.

Devemos ao avô de García Márquez, que contou a ele as primeiras histórias, o empenho em se maravilhar com o mundo, em nomear as coisas e em conhecer as pessoas. Devemos ao escritor, herdeiro daquelas lições, a infância, os mitos, a magia, a política e até os pelotões de fuzilamento, que anunciam o fim dos dias logo no começo de tudo. Mas devemos, sobretudo, à descoberta do gelo, que brilha como um diamante na abertura de seu maior romance.

A obra de Gabriel García Márquez foi a decifração desse mistério.

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