Sem protesto e grito, a democracia perde substância

por João Paulo 26/04/2014 08:00
Marcos Michelin/EM/D.A Press
Praça Tiradentes, em Ouro Preto: não nos convidaram para essa festa (foto: Marcos Michelin/EM/D.A Press)
Há a grande política e a política das pequenas coisas. E há, na mesma dimensão, a falência dos dois universos. Se a tradição da vida pública nos legou instâncias maiores de representação, com destaque para os partidos e sindicatos, a vida cotidiana alargou esse campo, muitas vezes como única forma de resistência em períodos em que o horizonte de liberdade se cerrou.

Hoje, em momento de democracia formal garantida, no entanto, continuam vigentes os expedientes que a todo momento inviabilizam o exercício pleno da liberdade política, tanto nos grandes cenários como na vida ao rés do chão. Convivemos com a repressão como se fosse normal, apenas pelo fato de existirem garantias formais de liberdade, ainda que não exercidas. Os exemplos são muitos.

A começar pela comemoração do 21 de abril em Ouro Preto, no começo da semana. Dando sequência a um período de proibição de participação popular, a Praça Tiradentes da cidade colonial foi fechada, inclusive aos moradores, para permitir que a solenidade oficial ocorresse sem problemas. Por problemas, entenda-se: gente. A nossa democracia detesta gente.

A democracia, todos sabem, não é algo natural. Construção histórica, ela é feita de um equilíbrio em permanente transformação entre consenso e conflito. Sem consenso, dado pelo eixo republicano, não há continuidade e império da lei; sem conflito, não se aprimoram as instituições nem se alarga o campo dos direitos. Pode parecer deselegante, mas sem protesto e grito, a democracia perde substância. Fica mofina.

Ouro Preto, que respondia pela capital do estado durante o evento em que dezenas de pessoas ganharam medalhas (nada mais infantil que destacar no cenário republicano pessoas que mereçam mais atenção que outras, pelo simples fato de exercerem suas funções na sociedade), foi exemplo da anulação do caráter democrático das ruas. Foi a capital do desrespeito estatal.

Com o povo de fora, a festa perdeu dimensão pública: foi um evento privado, ainda que a data e os atores fossem públicos, ambientado num espaço público, ainda que seu dono fosse impedido de participar. No limite, ao dar dimensão de segregação do público, o Estado extrapolou de seu papel de ordenador do espaço de todos para assumir o de invasor em nome de poucos. Foi um ato de força, uma intervenção na vida da cidade.

Mas o pior foi sentir como a sociedade estava escandida. No palanque, um dos oradores, o pré-candidato do PSDB, Aécio Neves, teve liberdade para criticar a presidente Dilma Rousseff. Nada mais justo e democrático. No entanto, aqueles que queriam protestar contra a ação de outras esferas de governo, ou até mesmo do próprio governo federal, não puderam fazê-lo com a mesma liberdade. Não havia faixas de professores, operários, estudantes, mulheres, movimentos contra a Copa etc. No limite, o 21 de abril de Ouro Preto não foi um ato cívico e plural, de franca liberdade da palavra, mas um comício.

Não é possível defender o esquema de segurança utilizado por qualquer tipo de argumentação, nem técnica, nem política. Ao impedir as pessoas de se aproximar de uma atividade pública, essa mesma atividade deixou de sê-lo para se configurar uma ação privativa e de interesse localizado. Para isso há espaços privados (ou mesmo públicos de acesso limitado, como palácios dos quais a cidade é servida).

Impedir o povo de circular numa cerimônia republicana é um contrassenso e um equívoco que pode redundar na pior das consequências: sua inutilidade e desprezo por parte dos cidadãos. Quando o povo não quiser mais protestar francamente nas praças, aí sim a democracia começa a correr riscos.

Se o cenário macropolítico foi conspurcado em Vila Rica, o mesmo pode ser percebido nos espaços intersticiais da política do dia a dia. Hoje, a ágora pública, por exemplo, é um centro de compras. De tal forma os shoppings se tornaram locais de convivência que passaram até mesmo a dividir seus espaços internos com nomes de ruas e alamedas, e a vender seus sanduíches gordurosos e outras porcarias em praças de alimentação.

Fosse mau gosto, já seria muito, mas há o indisfarçável travo da segregação: o shopping não é para todos. Apenas os sonhos que ele vende são universais, o acesso é selecionado por classe, cor e roupa, entre outras variáveis discriminatórias. As crianças perdem, com isso, o exercício da convivência entre diferentes e, em contrapartida, ganham o repertório do preconceito.

A praça não é do povo, na política. O shopping não é de todos, na vida cotidiana. A violência está em todos os lugares. A saída para a falta de democracia é mais democracia.

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