A política mudou. Só os políticos não percebem

O poder de convocação e a força da imagem fazem das redes um novo território democrático

por João Paulo 12/04/2014 06:00
Juarez Rodrigues/EM/D.A Press
(foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)
A disputa eleitoral no Brasil, mesmo com a retórica cabotina que fala em pré-candidaturas, já está definida em matéria de nomes. Começar com mentiras ou meias palavras parece ter sido sempre a regra do jogo: soltam-se balões de ensaio, programam-se pesquisas, acordos são feitos e desmentidos de olho na reação do eleitor-padrão, um idiota manipulável até a raiz de sua alienação funcional. Na verdade, parece um jogo em que os jogadores estão de um lado só do campo, o dos políticos. O eleitor é apenas um enigma a ser decifrado pelos responsáveis pelo marketing.

Sempre foi assim.

No entanto, há novidades que não estão sendo percebidas pelos políticos profissionais e seus estafes de campanha pagos a peso de ouro: eles não são mais os donos do campo e da bola. Até a presente eleição, as campanhas não contavam com o protagonismo do eleitor. O autoritarismo da política era tão natural, que toda a discussão se dava apenas no polo dos candidatos. O cidadão eleitor era objeto de ações pensadas para que ele desse a resposta mais adequada aos objetivos dos postulantes aos cargos.

Sempre foi assim. Mas não é mais.

Há várias mudanças no cenário que não estão sendo percebidas pelos antigos condutores todo-poderosos das campanhas eleitorais. Em primeiro lugar, a grande movimentação que levou milhões de pessoas às ruas de todo o mundo e, com isso, mudou o cenário político. O que os políticos não sacaram – e por isso trataram de tergiversar quando a questão da reforma política foi proposta – é que não se trata apenas de um movimento de revolta, reativo, mas de uma nova forma de organização, produtiva. Manifestações nas ruas não são apenas de protesto, mas de criação.

A recusa em enfrentar a reforma política por parte dos políticos profissionais foi a expressão de uma cegueira voluntária e, potencialmente, suicida. Enquanto as pessoas manifestavam sua discordância com a forma de condução dos negócios públicos no país, os políticos preferiram assegurar suas posições, como se não se tratasse de algo que lhes dizia respeito. A estetização das manifestações (com elogios formais) e sua cobertura quase exclusiva no âmbito da segurança foram algumas das estratégias diversionistas que isolaram de vez os políticos tradicionais do mundo real. Certos de que sem a reforma tudo voltaria a ser como era antes, trataram de retroceder aos seus domínios naturais.

Um aspecto que demonstra essa incompreensão do novo cenário é a relação dos candidatos com as redes sociais. Tudo que elas apontam de novidade, horizontalidade, capacidade de organização autônoma e independência foi compreendido apenas como uma “oportunidade de negócio”, e não como uma nova maneira de se comunicar, que considera o discurso do outro e a abertura ao debate e à crítica, além de seu potencial de convocação, que extrapola qualquer tentativa de cerceamento. O que os marqueteiros têm feito nada mais é que considerar as redes apenas uma mídia a mais, um território de propaganda a ser gerido com eficiência, com pleno domínio das mensagens.

O resultado tem sido uma sucessão de equívocos. O candidato Aécio Neves, do PSDB, por exemplo, vem tentando ações de controle sobre mecanismos de busca na internet, na tentativa de vedar conteúdos que julga desabonadores. Seu direito a se defender do que considera injurioso deve ser considerado legítimo, mas a forma como está sendo feita demonstra desconhecimento do fluxo de informações em rede e a ética própria que o dirige. No atual contexto libertário da rede, vale a máxima liberal clássica (que os liberais de carteirinha parecem não compreender bem) de que o melhor argumento ganha no jogo do dissenso natural de uma sociedade complexa. Uma mentira se combate com verdade, não com censura.

Esse tipo de reação, no entanto, se explica quando se considera historicamente a condução habitual das campanhas eleitorais. Afora o abuso do poder econômico e do desvio de verbas públicas para campanhas, fatos corriqueiros no Brasil que só agora começam a escandalizar, é preciso destacar o novo contexto dos meios de comunicação nesse processo. Conseguir tempo de televisão sempre foi considerado o objetivo fundamental dos acordos partidários. Há, por trás dessa visão, uma consideração negativa da capacidade de crítica do cidadão em relação às mensagens a ele dirigidas. Quanto mais tempo, mais votos: era essa a equação.

O que as redes têm demonstrado vai em outra direção. As campanhas deixaram de ser espaço de apresentação de projetos de governo (da esquerda, do centro, da direita, dos ecologistas etc.) para ser um cenário moldado pelo jogo das conveniências. Não se diz ao eleitor o que é próprio do momento privilegiado de educação política, mas aquilo que pode dar melhor resultado em termos de voto. O que parece ser um erro primário é a consideração do eleitor como ser acrítico em todo processo, valorizando comportamentos pré-políticos que são imponderáveis. O que as campanhas parecem mostrar hoje é um jogo de reafirmações infantis de posições: o governo diz que está tudo ótimo e a oposição que estamos no limiar do fim do mundo.

Para o governo, trata-se de reafirmar propósitos populares e fugir do debate em torno dos grandes desafios, sobretudo em termos de qualidade de serviços prestados e do planejamento para o futuro (sobretudo na educação, de todos o campo mais preterido na sociedade brasileira). Para a oposição, parece ter sobrado apenas a tarefa de apontar o dedo para a corrupção e a ineficiência, sem mostrar quais são seus propósitos políticos e, inclusive, gerenciais de que tanto se orgulham. Há evasão de compromisso nos dois lados e, também nas duas pontas, uma desconsideração com o potencial do cidadão como ser político autônomo.

As campanhas estão sendo encaminhadas de forma equivocada e desmobilizadora. Ninguém quer saber de triunfalismo esquizofrênico, nem de histeria automática e reativa. O risco não é só o da ineficiência, mas da desmoralização do campo político, o que é muito grave. O que os movimentos nas ruas mostraram em 2013 não foi a recusa da política, mas a necessidade de novos modelos de participação e conversa. Não é o que se percebe e, com isso, o processo atual de campanha tem perdido um rico potencial de debater o país e as diferentes alternativas para seu futuro.

Virar a mesa O que poucos estão percebendo, no entanto, é que o jogo já mudou. Em outras palavras, todo o esforço para conduzir as campanhas com paradigmas que são de outro tempo vai, com certeza, dar com os burros n’água. Aliás, já está dando. A dança das pesquisas de opinião tem mostrado isso: cada vez que a candidata do governo, Dilma Rousseff, cai nas enquetes, não sobe ninguém no outro campo. As intenções de voto não estão sendo transferidas, mas capitalizadas como crítica aos dois polos da disputa, que mostrará sua cara na hora certa. Não se sabe para onde sopra o vento, porque o eleitor, hoje, não é mais um boneco de porta de borracharia. É aí que está a novidade. E também a maior esperança na próxima eleição.

O novo eleitor tem tudo para virar a mesa. O primeiro passo é trazer para si o lugar que lhe é de direito numa eleição. Essa capacidade de protagonizar foi mostrada com eficiência nos movimentos de junho e tem deixado um rastro de mobilização que está operante, como uma chama-piloto, que pode ser acionada com rapidez pelas redes sociais a qualquer sinal de indignação. O desafio do novo militante é avançar para um momento de maior organização, sem que isso signifique alinhamento com estruturas tradicionais, sejam de esquerda ou de direita. Há uma passagem a ser feita, da movimentação cultural (no sentido amplo) para expressão política (inclusive na determinação dos rumos do Estado), embora sem pretensão de participação na máquina das decisões públicas.

Para o sociólogo espanhol Manuel Castells, em conferência em Porto Alegre que integra o livro Pensar o contemporâneo (Editora Arquipélago), há uma passagem possível entre a indignação (sentimento que alimenta o primeiro momento das novas formas de manifestação) e a esperança, com seu potencial de organização altamente complexo e descentralizado, como exige a sociedade em rede. Se a chispa da indignação traz o fogo para as ruas, o esforço seguinte é garantir um processo de decisões democráticas que leve em consideração esse sentimento de compartilhamento e solidariedade. Não se trata mais do jogo tradicional da formação de lideranças que ascendem ao mercado político tradicional, mas da emergência de uma nova política.

Há quem estabeleça uma distinção valorativa entre mobilização social e movimentos sociais. Algo como uma escala de crescimento, em que mobilizações de caráter passageiro levariam a organizações do tipo dos movimentos sociais, mais estruturados e capazes de pressão continuada ao núcleo do poder. No entanto, a coisa não parece ser bem assim. As mobilizações vêm mostrando que, independentemente de fortalecer movimentos já organizados, têm uma dinâmica própria e uma temporalidade mais acelerada, exigente. Têm pressa. No entanto, se alinham no que se poderia chamar, mais amplamente, de espaço de contrapoder, que tem obrigado a sociedade a reagir às suas demandas. Além disso, mobilizações e movimentos sociais, com estratégias singulares, parecem estabelecer parcerias em projetos de fundo, como distribuição de renda e poder.

O sociólogo Rudá Ricci, em seu recente Nas ruas – A outra política que emergiu em 2013 (Editora Letramento), diz que é preciso estar atento para a novidade surgida com os movimentos do ano passado. As antigas chaves não valem mais. “Identificar as manifestações de junho como uma trama nascida ou estimulada a partir do campo institucional é desconsiderar a profunda novidade que a juventude trouxe aos olhos das outras gerações. Um poder simbólico e um discurso difuso e inconcludente, fundado numa comunidade dinâmica e provisória. Um mundo que ainda não dialoga efetivamente com o campo institucionalizado da política e da representação social. E nem mesmo parece apresentar qualquer intenção nessa direção.”

Tudo isso cria, no atual momento político, uma nova perspectiva de contrapoder ao habitual jogo eleitoral de cartas marcadas e mensagens cacetes. O eleitor agora é ativo, não apenas depósito de slogans. O que as mobilizações e movimentos sociais estão trazendo de novo é a primazia do eleitor sobre o candidato. O antigo modelo (fundado no dinheiro, nos conchavos, nas articulações, nas pesquisas, nos marqueteiros e nos meios de comunicação de massa) deve ser substituído por um novo embate em que os dois lados devem falar, ouvir e debater. Não se trata apenas dos debates tradicionais e enjoados das redes de TV, um balé desgracioso de argumentos ensaiados e acusações, mas de novas formas de criação de espaços reais e virtuais de fala.

As manifestações mostraram que as redes, com seu libertarismo e anarquia (no sentido de ausência de princípio no qual se sustenta seu poder) têm tudo para dinamizar o cenário da eleição deste ano. Não como espaço de propaganda, mas, repetindo, de contrapoder. Os candidatos, pelo que mostraram até agora, não têm estado à altura do desafio. Pior para eles. Os jovens não vão esperar que eles entendam a lição. Há muito a ser feito e, como a história recente tem mostrado, a melhor forma de aprender a fazer política é fazendo. E nas ruas.

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