Romancista portuguesa lança ficção que reflete sobre o papel da Revolução dos Cravos para o país

por Mozahir Salomão Bruck 12/04/2014 06:00
João Pedro Marnoto/Divulgação
(foto: João Pedro Marnoto/Divulgação)
O 25 de abril em Portugal tem em torno de si muito de mítico e de inexplicável. Para a escritora portuguesa Lídia Jorge, a Revolução dos Cravos, como ficou conhecida, por ter se dado de modo pacífico mesmo tendo à frente as Forças Armadas, simboliza, na verdade, uma profunda fratura política e ideológica na sociedade portuguesa. Lídia Jorge está lançando o romance Os memoráveis, que traz a história de uma jornalista portuguesa que trabalha nos Estados Unidos e é enviada a Lisboa pela Rede de Televisão CBS em 2004, para contar o que se passou em seu país 30 anos antes, quando durante a Revolução dos Cravos pôs fim ao período da ditadura salazarista. O livro narra a busca da repórter por personalidades diretamente envolvidas com o movimento de 25 de abril, de quem são ouvidas as versões dos fatos e sobre como avaliam hoje o resultado daquela revolta, que retirou do comando do governo português Marcello Caetano, que substituíra Oliveira Salazar em 1968. Foram quase cinco décadas de governo ditatorial em Portugal. Aos 67 anos, Lídia Jorge é uma das mais consagradas escritoras portuguesas. É autora, entre outros, dos romances O dia dos prodígios (1980), O cais das merendas (1982), Notícia da cidade silvestre (1984), A costa dos murmúrios (1988) e O vale da paixão (1998). No ano passado, a revista francesa Le Magazine Littéraire incluiu a escritora entre as “10 grandes vozes da literatura estrangeira”.

Os memoráveis é seu segundo romance que efetivamente toma o 25 de abril como mote. Três décadas o separam de O dia dos prodígios. A sua visão em relação ao que ocorreu naquele momento histórico em Portugal mostra-se menos encantada. É o presente que acaba por redimensionar o passado, que, afinal, nunca está concluído?

Sim, há alguma coisa que é igual: o encantamento diante daquele momento, que teve algo de mágico e de inexplicável. Para tentar compreender o que passou, fiz um trabalho de pesquisa e de entrevistas, indo ao encontro desses homens que fizeram a revolução. Eles são um pouco da minha geração. Fui ao encontro deles e curiosamente quase todos, no princípio, ou no meio ou no fim de nossas conversas, quando perguntava sobre como fora aquele dia, respondiam que tinha sido algo inexplicável, um milagre, algo de inacreditável. Todos referem que houve durante 24 horas uma espécie de coincidências positivas, porque nunca ninguém quis disparar um tiro. Se no Brasil, na época do golpe, os militares queriam mesmo era fazer uma ação violenta, em Portugal tratava-se de homens cansados da guerra, desiludidos de que a violência podia resolver alguma coisa. Portanto, nessa situação, prometeram-se fazer tudo para não disparar o primeiro tiro. O que explica isso é que todos tinham atrás de si histórias sangrentas das guerras coloniais. Esse sentido mágico está presente em Os memoráveis e em O dia dos prodígios.

Os memoráveis parece ter uma metáfora principal: a tentativa angustiante de compreender de verdade o que se passou em Portugal em abril de 1974. Ou seja, é um percurso narrativo que todo o tempo faz um jogo entre memória e esquecimento. Pode ser entendido como o modo como a própria sociedade portuguesa se relaciona com este marco histórico, que lhe é tão fundamental?

É uma tensão que realmente atravessa todo o livro e que é a tensão da própria sociedade portuguesa. Há no livro uma espécie de exaltação do que aconteceu. De um lado, pessoas que entendem que este foi mesmo um marco definitivo. E, de outro, existe uma grande desvalorização por parte de outros setores da sociedade. São duas perspectivas que se cruzam e que ideologicamente fraturam a sociedade portuguesa, que, ao contrário do que se pensa, não é unida. É bem fraturada e a revolução de 25 de abril é uma espécie de símbolo de tudo isso. Para mim, pessoalmente, isso é tão importante do ponto de vista simbólico que eu não podia mais guardar essa vivência. Portanto, este livro nasce da minha perspectiva. Sou daquelas pessoas que consideram que a Revolução dos Cravos foi um marco definitivo e ainda não cumprido. Tenho entendimento oposto aos que não veem nela importância alguma, que foi um mal e que consideram que se ela não tivesse ocorrido, a sociedade teria feito o que fez e até melhor. O livro expressa outra visão: a revolução foi importante, mas não se cumpriu e a democracia ficou imperfeita. Tem um olhar melancólico sobre o que aconteceu, mas tem o olhar de exaltação e de celebração da pureza inicial – aquilo que ocorreu naquelas 24 horas –, algo de absolutamente extraordinário. E à medida que o tempo passa e a história não consegue explicar o que se deu, tudo começa a se transformar em uma espécie de mitologia. Cada vez mais, vejo o 25 de abril como um dia mítico e inaugural e que deve ser elevado.

Em Os memoráveis, a senhora cria uma ficção que busca, na história do 25 de abril, acontecimentos e personagens reais para tratar do movimento revolucionário. Como a senhora percebe a força da literatura em circunstâncias como esta e o poder que ela tem de fazer avançar alguns entendimentos, muitas vezes, para além da própria história e seu discurso de natureza científica?

Pode-se dizer que realmente no livro há uma espécie de hibridismo. Tratei de modo ficcional de figuras reais, concretas, muitas delas ainda vivas, e que estão sujeitas à história e até sujeitas à história futura. E por mais livros de história, reportagens, biografias, entre outros, que possam aparecer sobre este assunto, a ficção tem outro papel. É o papel de lançar mão de fatos irreais e, a partir deles, buscar encontrar a essência da verdade. A ficção nunca chegará lá, mas creio que vai mais fundo que a descrição dos fatos em si. Creio que quem faz ficção, em circunstâncias como essa, busca encontrar a gênese dos conflitos. E ao tentar fazê-lo, toca numa realidade que a história não consegue descrever – os sentimentos primários que estão nas origens das coisas. O literato coloca-se na perspectiva pessoal e íntima dessas pessoas. Creio que é isso que faz com que o escritor consiga perceber o motivo profundo das coisas. A ficção é uma operação arrojada. Diria que o escritor trabalha sem rede.

Muito dessa melancolia que aflora do livro parece ter como motivação o que se passou pós-revolução, como os interesses de grupos e individuais se sobrepõem mesmo a um sentimento, uma determinação de todo um povo.

Parece-me uma leitura bem correta. Mesmo com a revolução, houve pilares da sociedade portuguesa antiga que não foram tocados, sobretudo os interesses das classes dominantes. É muito curioso perceber que as famílias poderosas de antes mantiveram seus privilégios na democracia. Há dois pilares que permaneceram intocados: o financeiro e o da justiça. A mim, parece-me pior o que se vê no pilar da justiça. Há 40 anos, as leis foram mudadas, mas não simplificadas. No plano jurídico, criou-se um conjunto de coisas que levam à lentidão e ao travamento do andamento de processos, o que faz com que prescrevam. Em Portugal, sabemos perfeitamente quais processos nunca chegarão ao fim. Isso tem gerado impunidade e tem dificultado ainda mais o desenvolvimento da cidadania e da sociedade como um todo. E em relação a isso há um sentimento de impotência latente no povo português – essa ideia de que quem tem muito dinheiro jamais será julgado. O sentimento de que temos uma justiça mais imperfeita possível: é forte com os fracos e fraca com os fortes. Uma espécie de duplo recalcamento entre nós.

De algum modo, seu livro coloca uma questão muito complexa da contemporaneidade: a falta de crença na ação coletiva, na solidariedade, na formulação de ideais. É difícil imaginar hoje um novo 25 de abril com as pessoas ganhando as ruas e tomando para si as rédeas da história?

Diria que é impossível. E talvez seja um dos motivos que mais desencantam as pessoas que é a ideia de que qualquer agremiação é inorgânica, feita aparentemente em torno de um interesse momentâneo. É feita segmentária, dispersa e ocasionalmente porque se em determinado dia podem se juntar cinco mil pessoas em uma praça, amanhã o mesmo apelo não junta ninguém. No meu entendimento, é que o opositor não está próximo e não está definido e assim não há verdadeiramente um objeto contra o qual lutar claramente. Portanto, a ideia de impotência é generalizada. Sentimos isso, sobretudo, no momento em que os líderes são fracos e, portanto, essa descrença fica ainda maior. Não temos ninguém a quem bater à porta. Creio que as pessoas da minha idade ainda têm a memória e sabem onde estão as figuras tutelares, mas os jovens não têm essas figuras tutelares. Querem pessoas da sua idade, pessoas em quem acreditar, mas essas pessoas não aparecem. Até porque, hoje é muito mais fácil desmantelar uma personalidade do que há 20, 30 anos. Hoje, a mídia está em torno de tudo o tempo todo. É preciso ser verdadeiramente puro para que a pureza transpareça. Para mim, há aqui uma fase de transição. Vejo que a esperança vai nascer porque é como uma peneira. Está se peneirando e algo de melhor, pepitas de ouro tendem a aparecer. Diria que o futuro é uma casa escura que se alumia se houver coragem e desprendimento e isso percebe-se em vários momentos desse livro. Acredito nisso de verdade. Não foi apenas um artifício apenas literário. Aliás, este livro eu não o escrevi sob circunstância literária. Eu o escrevi, digamos, por circunstância vivencial.

. Mozahir Salomão Bruck é professor da PUC Minas.

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