Editora 34 oferece ao leitor brasileiro os contos completos do argentino Rodolfo Walsh

Obra foi reunida na coletânea 'A máquina do bem e do mal'

por André Di Bernardi Batista Mendes 12/04/2014 06:00
 Editora 34/Divulgação
(foto: Editora 34/Divulgação)
Depois de Essa mulher e outros contos e Variações em vermelho, lançados pela Editora 34, chega agora aos leitores brasileiros A máquina do bem e do mal, do argentino Rodolfo Walsh, um dos mais interessantes nomes da literatura argentina. As três edições completam a publicação no Brasil dos contos completos do autor, também lembrado por sua intensa militância política e pela sua luta contra a ditadura, que marcou seus últimos 10 anos de vida. O livro está dividido em partes: “Primeiros contos”; “Os casos do delegado Laurenzi”, quando Walsh mostra a riqueza do gênero policial argentino; e “Contos finais”, que revela a ficção madura do escritor.

A literatura de Rodolfo Walsh é amiga do imprevisto. Walsh é dono de uma pronúncia muito peculiar em todos os sentidos, uma dicção que abraça, que afaga tudo que pode ser desconexo, estranho, às vezes luminoso. Trata-se de uma literatura feita de reflexos, de refluxos, que não aceita menos que o muito profundo. Esse tipo de literatura incita, privilegia o movimento, encoraja um certo desprendimento que leva o leitor a reinventar o seu modo de enxergar as cosias.

Escrever é correr riscos, é aceitar a existência de abismos, quando tudo se esquiva. Walsh exige um parceiro, exige um leitor não menos ávido, não menos tomado por um espírito furioso (curioso). O argentino é pouco, ou nada condescendente. Transigir não combina com o labirinto das ideias de Walsh. As coisas, até as pedras, escondem asas.

Perniciosas, mas também essenciais, as palavras carregam facas e bálsamos, as palavras pecam, de tão vivas, mas também (por isso mesmo) purificam. Walsh escreve com estratégia e a tática de um grande general. Ele avança, vai e volta diante de um território de sonhos, diante de atropelos, até o intangível. É o próprio escritor quem explica, no início do livro: “Sou lento, levei 15 anos para passar do mero nacionalismo para a esquerda; lustros para aprender a montar um conto, a sentir a respiração de um texto; sei que me falta muito para poder dizer instantaneamente o que quero, na sua melhor forma; acho que a literatura é, entre outras coisas, um avanço laborioso através da própria estupidez.”

Walsh é capaz de ferocidades, mas sem perder um certo lirismo, sem perder a ironia latente. Algumas passagens do livro lembram muito cenas de cinema, cenas belíssimas, como quem lembra: “Recordar era como tirar corpos pesados da água turva. Recordar era, por exemplo, um rosto antigo que emergia do fundo da água, devagar. Isso era recordar.”

Os contos do livro seguem numa linha de tensão cheia de continuidade. Os personagem são brutos, reais, são pessoas que "tinham a terra no corpo". Walsh é, também, dentro das pequenas histórias, apenas um observador, que apenas observa, assustado, o desenrolar da linha dos acontecimentos. O mesmo vento que supostamente adula o capitão não é o mesmo que provoca as crianças, que não é o mesmo vento que modifica o semblante, a perstistência das pedras.

O conto deve mostrar apenas o braço, as pernas, a mão, as unhas dos pés, os cabelos; o conto deve privilegiar apenas o corpo nu, sem adereços, relógios, brincos, botas, anéis, que para isso existem os romances. O corpo é relativamente simples. O corpo/conto deve ser simples, feio ou bonito, apenas simples. A poesia já é outra coisa.

Walsh, em A máquina do bem e do mal, inventou histórias nada palatáveis. Ele termina os textos deixando no ar, naquele corpo, nesse caso, os contos desprovidos de esperança, um riso acerbo, amarelo, sarcástico, sem mais.

Não podem sobrar palavras. Limites, liames devem ser respeitados. É preciso fôlego para atravessar, num respiro, a longa piscina da página em branco. A lista de restrições é grande. Rodolfo Walsh respeita todo esse processo e inventa outros, pois o leitor de A máquina do bem e do mal começa e se vê na obrigação de terminar o texto, pois ele tem sabor, pois Walsh o pega pela mão e, como se ele mesmo fosse um dos personagens, convida seus possíveis amigos (os leitores) para uma aventura de descobertas mútuas. Acho que Walsh começa as suas histórias sem um fim preestabelecido. Ele ilude, a sua farsa chega a esse ponto. E é do corriqueiro que surgem as melhores histórias.

Walsh não busca explicar tanto, pois confia naquele que lê. O argentino prefere, arma sua rede e deita diante, dentro dos mistérios das entrelinhas. Basta, por exemplo, como no conto “As três noites de Isaías Bloom”, que abre o livro, um homem, uma mulher, e um outro homem para surgir tempestades, para vermos nascer uma trama preciosa, não menos sinistra.

Estranheza A máquina de produzir luz não deveria estragar nunca. Para tanto inventamos a política, o diálogo e outros suportes. Mas as coisas não funcionam bem assim. Apesar da música, dos pássaros que escancaram o céu (aquele relâmpago) para todos. A engrenagem inversa desconstrói da mesma forma, com a mesma fúria, na mesma desmedida, forças contrárias cheias de sabe-se lá Deus que sombras. Tudo é muito estranho. Ainda é cedo para sabermos, por isso, talvez, de vez em quando surgem escritores como Rodolfo Walsh, Borges, Cortázar. Flor ou espinho; sol ou sombra; sim e não, que força impulsiona o carrossel?

A máquina do bem quebra o ciclo, o mal reinstaura o círculo, e vice-versa. A lua baça, um simples copo verde de um dos contos com a inscrição: "Boa sorte", tudo, o movimento confunde a engrenagem das almas simples. A foice e o martelo, o boi de Wall Street, o planalto central do país, ainda existem crianças e a dura alegria, ainda existem parques e gangorras, de vaievém. Tudo é muito cruamente estranho.

Rodolfo Walsh escolheu aceitar a dialética, esse tanto de vertigem e desencontro. É óbvio: chove, de cair águas; faz sol, de calores. Só o marinheiro sabe que mar e vento são indissociáveis. É preciso amor e estratégia para não deixar o barco virar. Não sabe o ouro da prata, sabe o menino de suas pedras. Tudo tem valor. Tudo depende da incidência da luz, diria Sartre, pois tudo é relativo. A literatura que não agride apenas diverte. Rodolfo Walsh é uma espécie de cachorro que não morde, mas que faz questão de mostrar os dentes. Todo bom escritor vem de uma raça ruim.

Os contos de A máquina do bem e do mal carregam a intensidade dos relâmpagos, que é luz, mas luz intensa, cresta, de curta duração. A escrita de Walsh é límpida, transparente, direta, dentro de imprecisões. Alguns diriam tormenta, o argentino diz apenas: não para de chover águas. Naturalmente, o vento nos faz lembrar da força das coisas invisíveis. Walsh vai até ela, duvida, conta e afasta-se dela. É preciso chegar ao ápice de dizer a verdade.

Rodolfo Walsh nasceu em 25 de janeiro de 1927, na província argentina de Neuquén. Foi tradutor e editor. Suas principais obras são os romances-reportagem Operacion masacre (1957) e Caso Satanowsky (1958). Deixou uma série de contos policiais e duas peças de teatro, La granada e La batalha (ambas de 1965). Para muitos, sua contundente carta aberta à Junta Militar tornou-se modelo de resistência aos regimes autoritários. Walsh foi assassinado por um comando militar em 25 de março de 1977.

A MÁQUINA DO BEM E DO MAL
• De Rodolfo Walsh
• Editora 34,
• 240 páginas, R$ 44

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