Fotógrafo mineiro Sebastião Salgado refaz sua impressionante trajetória no livro 'Da minha terra à Terra'

Publicação foi escrita em parceria com a jornalista Isabelle Francq

por Ângela Faria 29/03/2014 06:00
Jairo Goldflus/Divulgação
(foto: Jairo Goldflus/Divulgação)
Ninguém tem o direito de se proteger das tragédias de seu tempo”, diz o fotógrafo Sebastião Salgado em seu pequeno livro de memórias, 'Da minha terra à Terra' (Paralela), escrito em parceria com a jornalista Isabelle Francq. Esse mineiro dedicou 40 de seus 70 anos à fotografia. Fez de Leicas e Pentaxs “armas” de uma guerrilha particular contra a injustiça social. Refugiados, trabalhadores do mundo globalizado, vítimas de atrocidades na África, movimento dos sem-terra no Brasil – não há pobres “invisíveis” no planeta Salgado. “A fotografia é uma escrita”, diz ele. Luz é linguagem.

Aos 15 anos, o mineiro Sebastião deixou a fazenda da família em Aimorés, no Vale do Rio Doce, para estudar em Vitória, capital do Espírito Santo. Ralou como todo jovem remediado, formou-se em economia, engajou-se em movimentos antiditadura militar ao lado da mulher, a arquiteta Lélia. Na mira do temido SNI, o jovem casal esquerdista teve de fugir para a França. Sebastião se apaixonou pela África, mas em vez de relatórios e números, gostava mesmo era de fotografar o continente. “Reencontrei meu paraíso”, rememora.

Com o apoio de Lélia, o jovem e promissor tecnocrata largou tudo: apê bacana em Londres, carro do ano, conforto e estabilidade para se aventurar como fotógrafo. Os dois foram morar num minúsculo chambre de bonne parisiense, sem banheiro. A França ensinou solidariedade aos jovens expatriados: banho, só na casa de amigos.

Salgado fez nus, esportes e retratos. Fotojornalista, integrou as equipes das respeitadas agências Sygma e Gamma. Foi o único a registrar o atentado que o presidente norte-americano Ronald Reagan sofreu em 1981 – o furo ajudou a Magnum, onde o mineiro trabalhou por 15 anos, a superar dificuldades financeiras. Deixou a agência para apostar no projeto 'Êxodos', contundente relato da brutal migração humana. Naquela década de 1990, nada menos de 200 milhões de pessoas trocavam o campo pela cidade.

Salgado dedicou seis anos a 'Êxodos': fotografou gente da Índia à América Latina. Testemunhou também o drama de desabrigados, acompanhou tragédias causadas por guerras e “limpezas” étnicas, suas imagens denunciaram o genocídio em Ruanda. Num campo de refugiados, dois milhões de pessoas tentavam sobreviver à guerra entre hutus e tútsis. Abalado, o fotógrafo viu o corpo atacado por seus próprios estafilococos. Teve de ir a Paris para se tratar. Mas voltou para a África.

Em 1994, ele e a mulher criaram a agência Amazons Images. Os projetos – reportagens visuais que levam anos para ficar prontas – deram origem a vários livros. Entre eles, 'Trabalhadores', 'África', 'Êxodos', 'Retratos de crianças do êxodo' e 'Terra' – frutos de parcerias com entidades humanitárias e movimentos sociais.

Gênesis Em 'Da minha terra à Terra', o fotógrafo confessa: chegou a perder a esperança no homem diante das atrocidades que presenciara. Ficou deprimido. Só redescobriu o mundo ao se dedicar ao projeto 'Gênesis', que deu origem ao belo livro lançado no ano passado. Em maio, as fotos ficarão expostas no Palácio das Artes e no Parque Municipal, em Belo Horizonte.

Homenagem de Sebastião e Lélia ao planeta, 'Gênesis' mostra o quanto nos faz falta a sabedoria dos animais, dos vegetais e dos minerais. Não é exagero afirmar: foi quase uma jornada bíblica. Salgado chegou a andar 850 quilômetros na Etiópia; teve os pés lavados e beijados em aldeias habitadas por gente que se diz descendente da rainha de Sabá; aguentou 40 graus negativos para registrar a vida dos nenetses, na Sibéria; rastejou para se comunicar com tartarugas e iguanas; percorreu o Saara a pé às vésperas de se tornar setentão; passou dois meses entre os índios z’oés, na Amazônia.

Para nos contar tudo isso, o fotógrafo abdicou da cor. Para ele, só o preto e branco expressa a densidade do mundo. E que não se tache de “estética da miséria” a obra de Sebastião Salgado, sobretudo os projetos que expuseram a miséria humana. “Não me venham falar de voyeurismo!”, reage o mineiro zen, acusando políticos e o Conselho de Segurança das Nações Unidas pelos assassinatos que presenciou na África. “Fiz essas imagens porque tinha obrigação moral, ética de fazê-las”, escreve.

Para ele, todos somos responsáveis. “A sociedade de consumo da qual participamos explora e pauperiza enormemente os habitantes do planeta”, defende, dizendo que é dever do cidadão se manter informado a respeito das tragédias causadas pela desigualdade. “Esse é o nosso mundo, precisamos assumi-lo”, convoca.

DA MINHA TERRA À TERRA
• De Sebastião Salgado
• Com Isabelle Francq
• Editora Paralela
• 152 páginas, R$ 24,90

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