Raquel Naveira fala de seu trabalho sobre a lusofonia

Professora de literatura ainda defende o romanceiro como forma de expressão de grandes momentos históricos

por Carlos Herculano Lopes 15/03/2014 00:13
Studio Mauro/Divulgação
(foto: Studio Mauro/Divulgação)
Nascida em Campo Grande e vivendo atualmente em São Paulo, onde é professora de estudos linguísticos e literários, a escritora Raquel Naveira lançou recentemente o livro Sangue português: raízes, formação, lusofonia, com o qual venceu o Prêmio Guavira de Literatura, da Fundação de Cultura do Mato Grosso do Sul. No trabalho, a partir da sua herança portuguesa, a escritora rememora em forma de poemas o caminho percorrido por seus antepassados até o Brasil. Doutora em língua e literatura francesas pela Universidade de Nancy, na França, e autora de vários livros, entre eles Guerra entre irmãos, inspirado na Guerra do Paraguai, Raquel Naveira, em entrevista ao Pensar, fala de sua ligação com os romanceiros e de seu estudo sobre a língua e literatura portuguesas.


Entrevista

Raquel Naveira
escritora

Como tem sido para você conciliar o magistério com a poesia? Como começou sua história com a literatura?

Poesia e magistério sempre andaram juntos em minha vida. É como o processo de ler e escrever. A professora alimenta a poeta com seus estudos e dedicação aos livros e a poeta dá ânimo, força e paixão às lições da professora. A minha história com a literatura começou na infância. Sempre fui fascinada pela palavra. Ela é minha forma de ser e estar no mundo. Meu avô, um autodidata, possuía uma rica biblioteca e eu gostava de manusear os livros, de observar figuras à luz de velas. Logo que comecei a ler, encontrei Monteiro Lobato e foi o abrir das asas da imaginação. Devia ter uns 8 anos quando resolvi ser escritora. Escrevia histórias de fadas e bruxas em pequenos cadernos. Nasci com vocação para escritora e professora. O amor pelos livros transformou-se em amor pelo magistério. A poesia veio na adolescência. Creio que mágoas curam grandes mágoas, como escreveu Camões. Sempre sonhei em escrever livros. Dediquei-me ao jornalismo e ao magistério. Quando lancei meu primeiro livro, o Via sacra, aos 31 anos, já tinha um público leitor formado. Publiquei de forma independente, não sabia como fazer. Aí apareceu o correio. Tornei-me uma missivista. Espalhei cartas pelo Brasil. Enviei meu livro a centenas de pessoas: amigos, jornalistas, escritores, editores, professores, instituições. Uma vida como a de Pablo Neruda, na Isla Negra, aguardando o carteiro.

Tudo isso vivendo no Mato Grosso do Sul, em Campo Grande? Em que dimensão esse estado e a cidade influenciaram na sua literatura?


Mato Grosso do Sul é minha terra natal, minha origem. Amo minha terra, sem permanecer mais nela, mas reconhecendo seu direito de persistir para sempre dentro de mim. Sinto-me naquelas ruas de Campo Grande, mesmo pisando outras ruas. Minha arte sempre será uma mescla de tudo que vi com olhos de campo-grandense. É como se minha alma tivesse três dimensões: a ancestral, portuguesa, cheia de veleiros e barcos negros saindo pelo mar desconhecido; a de fronteira entre o Brasil e o Paraguai, entre o bem e o mal, entre o sonho e a realidade; e esta agora jogada como um morcego pelos túneis e viadutos dessa grande cidade que é São Paulo. Sem ter nascido no MS, por exemplo, não escreveria Guerra entre irmãos, que é um livro de poemas inspirados na Guerra do Paraguai e que surgiu a partir do meu desejo de escrever romanceiros, de pesquisar história, de imaginar os sentimentos atrás dos fatos notáveis. Amo o épico: a Ilíada, a Odisseia, os Lusíadas. E depois de ler o Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, pensei num tema que me impressionasse e veio à lembrança a Guerra do Paraguai, o maior conflito armado da América do Sul. Mato Grosso foi o palco da guerra, nada mais natural que escolhesse estudar essa tragédia que dizimou mais de 150 mil brasileiros e 300 mil paraguaios, entre escaramuças, batalhas, fomes e epidemias. Escolhi o monólogo dramático como forma de apresentar os personagens da guerra, uma maneira de me colocar na pele e na voz do outro. E um tom de profunda compaixão, numa guerra onde todos saíram perdendo, onde todos foram vencidos. Esse livro teve inúmeros desdobramentos, inclusive alguns de seus poemas publicados em livros de história do Brasil.

Como é o seu método de trabalho?


Escrevo muito. Escrever é o que me faz bem. Sinto-me um peixe no mar diante da folha em branco. O meu universo é o das palavras. Creio no poder da palavra. Que a palavra é bênção e maldição. Que ela cria o real. Que Deus é o verbo encarnado. Que o reino das palavras é mágico. Que a palavra atrai, profetiza, cura, exorciza, marca com ferro e fogo. Para o escritor, é difícil abrir clareiras no cotidiano que nos obriga a inúmeras tarefas estafantes como ir a bancos e supermercados. É preciso, sim, disciplina, estabelecer horários ou até escrever nas madrugadas, hora mística para a criação.

A sua ancestralidade portuguesa está retratada em dois dos seus livros: Álbuns da Lusitânia e Sangue português, com o qual você ganhou o Prêmio Guavira. Como nasceu este livro?

Sangue português: raízes, formação e lusofonia recebeu o Prêmio Guavira de Literatura da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul em 2013. Reafirmando minha vibração épica, tracei o inventário das ressonâncias atávicas de minha genealogia familiar e literária. A partir da herança portuguesa, rememoro o percurso dos meus antepassados; revisito monumentos célebres do patrimônio histórico-cultural de Portugal; rendo tributo a grandes poetas como Bocage, Pessoa e Camões; canto as terras lusófonas de África e de Ásia. Compus um variado painel didático-poético sobre o legado de nossa identidade cultural. Creio que a lusofonia pode ser uma plataforma de solidariedade a partir da qual os povos que falam português poderão se aproximar e ampliar o âmbito de suas ações econômicas, políticas e culturais. A língua portuguesa é meu instrumento de trabalho, de expressão. Meu maior desejo tem sido sempre o de dominá-la, conhecê-la, respeitá-la até mesmo para subvertê-la, para conceber poesia.

Sangue português: raízes, formação, lusofonia

. De Raquel Naveira
. Editora Arte e Ciência. Informações: www.raquelnaveira.com.br

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