Duelo de MCs e a revitalização do carnaval em Belo Horizonte devolvem o espaço urbano ao povo

Jovens mineiros transformam ruas, praças e viadutos em tribunas da democracia

08/03/2014 00:13
Cristina Horta/divulgação
(foto: Cristina Horta/divulgação)
Luiz Fernando Campos


Na última década, Belo Horizonte tem assistido ao movimento de resistência político-cultural que renova a apropriação do espaço urbano e tensiona a noção de público na cidade. Se a pressão do poder econômico vem restringindo a liberdade de circulação e de expressão dos cidadãos nas ruas, movimentos sociais e grupos culturais da juventude belo-horizontina – especialmente de camadas da população tradicionalmente alijadas dos processos de tomada de decisão que envolvem a coletividade – articulam-se de forma autônoma para reverter o cerceamento do ir e vir no espaço público.

Se projetos higienistas do poder público preconizam a “revitalização” ou a “requalificação” de áreas “degradadas”, especialmente de ruas, praças e viadutos do Centro da capital, esse movimento subverte o discurso oficial e mostra, a partir de protestos, ocupações, assembleias, intervenções artísticas e iniciativas de participação no debate político, que a capital pode ser construída a partir do encontro entre os cidadãos e é entendida como local de referência cultural e troca de experiências e saberes.

O filósofo francês Henri Lefebvre, em sua obra clássica O direito à cidade, diz que estar no Centro é altamente desejável pelos sujeitos, na medida em que eles recusam o gueto social dos subúrbios e o isolamento na multidão dos indivíduos. Esses sujeitos expõem as feridas de uma cidade cujo espaço é apropriado de forma desigual e, assim, fragmenta-se e tende ao conflito social. Eles clamam participar da história inscrita nos muros, nas ruas, nas praças e monumentos, formando a memória de um povo.

Há pelo menos 10 anos, a Região Central de Belo Horizonte vem sendo ocupada por grupos de resistência cultural e política. Destaca-se o Duelo de MCs, que há seis anos faz do Viaduto Santa Tereza o reduto do hip-hop belo-horizontino e reúne jovens de diversos níveis socioculturais e de diferentes regiões da capital para “batalhas” a partir da improvisação de rimas ao som do rap.

Dada a importância desse movimento para a capital, a pesquisa de mestrado “Ocupa Belo Horizonte: cultura, cidadania e fluxos informacionais no Duelo de MCs”, realizada na Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), discutiu a reapropriação do espaço público em BH e os fluxos informacionais criados a partir da interação entre os rappers. A metodologia contemplou o trabalho de campo, entrevistas e a análise de conteúdo dos versos das “batalhas do conhecimento” – uma das modalidades do duelo que sugere o tema antes das disputas –, além de outros materiais produzidos pelos MCs.

Longe de se limitar apenas a um encontro de lazer e entretenimento, o Duelo de MCs demonstrou ser um espaço de resistência política e formação cidadã. Ele cumpre o importante papel de fomentar a reflexão coletiva dos problemas da cidade e empoderar os jovens, que passam a entender seu papel como cidadãos e a participar das tomadas de decisão referentes ao futuro de BH e seus moradores. Ao produzir discursos dissonantes daqueles já instituídos, o Duelo de MCs reafirma o papel central da prática política em espaços não usuais na contemporaneidade, contribuindo para o deslocamento das relações de poder.

O Duelo de MCs se revelou um espaço de fluxo intenso de informações que denotam postura crítica e posicionamento político. Sendo assim, os MCs ressignificam a realidade da juventude negra e periférica em Belo Horizonte – muitas vezes marcada pela marginalização, o estigma da criminalidade, a violência policial e a falta de acesso a serviços públicos – e engendram discursos e representações simbólicas que produzem novos sentidos para esses sujeitos.

Folia Os grupos de resistência cultural em BH também aproveitam o carnaval para dar visibilidade a suas questões. Aliás, a eclosão de centenas de blocos de rua que desfilaram na capital mineira este ano é também reflexo do movimento de reapropriação da cidade – tendência verificada há menos de cinco anos, que tem crescido a passos largos. Entre 2013 e 2014, dados da Belotur revelam que o número de blocos dobrou de 70 para 140. Antes restritos a áreas como o Centro e a Savassi e bairros de grupos carnavalescos tradicionais, como Santa Tereza, Santa Efigênia, Sagrada Família e Santo Antônio, eles proliferam por todas as regiões da capital.

Historicamente, o carnaval sempre foi o momento para, com toques de ironia, irreverência e deboche, tecer críticas aos sistemas político, econômico e social do país. No contexto belo-horizontino, o crescimento do número de blocos veio acompanhado de enredos que acentuaram o discurso da contestação social, da insatisfação com as decisões do poder público e da reivindicação de direitos.

Nesse contexto, é emblemático o movimento Praia da Estação, que acabou criando um carnaval permanente na capital mineira. Ele surgiu em 2010 como reação ao decreto da prefeitura que proibia a realização de eventos de qualquer natureza na Praça da Estação. Para reafirmar a vocação do espaço urbano como o lugar da coletividade, o movimento se organizou para ocupar o local periodicamente, promovendo o encontro e a confraternização das pessoas e, sobretudo, o protesto a políticas restritivas à livre circulação e expressão na cidade. No carnaval, o bloco da Praia da Estação vem reafirmando seu propósito de marcar o território conquistado autonomamente pelos cidadãos.

Não se pode deixar de considerar os reflexos que as “jornadas de junho” trouxeram para o debate sobre a esfera pública no Brasil. Passada a onda de manifestações, protestos e ocupações, grupos se articularam para exigir do Estado o cumprimento de seu papel de fomentar a democracia e a ética no trato da coisa pública. O Espaço Comum Luiz Estrela – centro cultural comunitário que ocupa desde outubro de 2013 um casarão abandonado no Bairro Santa Efigênia, em BH – foi criado depois dos protestos anti-Copa. No carnaval deste ano surgiu o Blocomum. O movimento Tarifa Zero, que luta pelo transporte como direito social, trouxe o Bloco Pula Catraca!, que circulou no ônibus Tarifa Zero – sem catracas.

Dessa forma, o Duelo de MCs e outros grupos culturais reivindicam o direito à cidade, à cultura e à liberdade de expressão, mostrando que o espaço urbano também se destina ao embate de ideias e demandas sociais. Caso sejam reconhecidas por um Estado democrático e plural, essas iniciativas dão visibilidade a discursos dissonantes e outras representações simbólicas sobre a realidade. Assim, abre-se espaço para que a cultura cumpra sua função na ampliação de visões de mundo.

Luiz Fernando Campos é jornalista, mestre em ciência da informação pela UFMG e especialista em informação internacional e países do Sul pela Universidade Complutense de Madri

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