Quem se diverte, pensa com o corpo

por João Paulo 01/03/2014 00:13
Sergio Amzalak/Esp. EM/D.A Press
(foto: Sergio Amzalak/Esp. EM/D.A Press)
Não existe erro maior que separar alegria de pensamento. A advertência não é nova. Nietzsche já chamava a atenção para a necessidade de uma filosofia alegre, de uma gaia ciência. A tristeza e o rancor não apenas impedem a vida plena, mas tiram fora boa parte da potência do pensamento.

Hoje, sábado de carnaval, é um bom momento para levar em consideração a força transformadora e crítica da alegria. Belo Horizonte, nos últimos anos, vem mostrando como é possível, contra todas as forças tristes do conservadorismo, recuperar a rua como espaço de manifestação popular.

Durante muitas décadas, havia na cidade uma ideologia sutil do esmaecimento da vitalidade. A capital era orgulhosamente melancólica, avessa ao convívio social no espaço público. Quando chegava o carnaval, o que se via, ao lado de uma crítica afetada à qualidade das escolas de samba e dos blocos, era um esvaziamento da cidade.

A retomada da festa de rua em BH teve várias motivações. Ao lado do incansável movimento de resistência dos sambistas da cidade, a nova geração viu na operação que fechava as artérias da alegria uma regressão que também se manifestava em outros contextos da expressão da cidadania. Belo Horizonte estava se tornando um território avesso à liberdade.

O carnaval de rua, neste sentido, se tornou uma manifestação política, que se somava ao movimento de uma turma que não aceitava a tendência higienista, discriminatória e separatista que vinha tomando conta da administração pública municipal. Para relembrar: praças fechadas, burocracia excessiva para concessão de licenças, proibição de eventos populares, criminalização de manifestações culturais como o duelo de MCs (que parece ser o único a apresentar “problemas de segurança”), monopólio da religiosidade católica, isolamento de áreas consideradas nobres (uma espécie de vipização do espaço público).

A retomada do carnaval, por essas e outras, se agrega a uma série de manifestações de oposição à privatização do espaço público e à procrastinação da política cultural para o estado e para a cidade. Entre elas, a concentração de aparelhos culturais nas áreas “nobres”, as repetidas tentativas de inviabilizar a realização de festivais (mantidos pela mobilização dos artistas) e o adiamento vergonhoso da entrega de espaços culturais à população, como os teatros Francisco Nunes, Marília e Clara Nunes, onde se arrastam reformas ao longo de anos.

As pessoas ligadas à cultura, não apenas os artistas, mas aqueles que compreendem o setor como um direito de cidadania, puseram o bloco na rua em ações exemplares, como a Praia da Estação e o Espaço Comum Luiz Estrela, que ocupou um prédio público sem utilização há mais de 20 anos. O carnaval de rua foi mais uma dessas atividades, que se integram à onda civilizadora que tem a alegria como combustível. A cidade, hoje, respira carnaval.

Como todo o processo tem uma base fortemente militante, não é um acaso que o nosso carnaval tenha criado, na tradição da irreverência da festa brasileira, espaço para a crítica e mobilização política. Há vários elementos na festa da cidade que expressam essa vertente participante, sem complicar demais nem perder a razão de ser, que é a folia em toda sua capacidade criativa de ir além das medidas convencionais. Quem se diverte, pensa com o corpo.

Assim, além de se incorporar no movimento de reconquista do espaço público para expressão de ideias, comportamentos e projetos de vida, o carnaval traz elementos próprios em sua agenda. Um deles é a retomada das marchinhas, que vêm conquistando a criatividade de novos compositores, muitos deles vindos de outras linhas estéticas, que encontram nessa forma popular um veículo explosivo de crítica social e política. Corrupção, desmandos, desvios de verbas públicas, compras sem licitação, consumismo, comportamentos inaceitáveis em pessoas públicas, tudo isso é jogado no ar, como lança-perfume que embriaga, mas ajuda a pensar melhor e engrossa o bloco da indignação.

Liberdade moderna A trajetória dos blocos com pegada política em BH é relativamente recente, mas a inspiração é potente e o resultado cada vez mais expressivo. Em 2009, eram três agremiações espontâneas na cidade – Peixoto, Tico-tico Serra Copo e Proa. No ano passado, os blocos da cidade bateram a marca dos 80 grupos.

Ano passado, com as manifestações de junho, a vocação crítica – mas também propositiva – alimentou o surgimento de vários blocos. Quem foi brincar, levou a sério o patrimônio de lutas sociais da cidade. Alguns grupos têm a marca de nascença daquele momento, como o Pula Catraca, que veio do Coletivo Tarifa Zero, e o Blocomum, do Espaço Luiz Estrela.

São muitos os blocos que já estão nas ruas, ampliando a ação política até o limite da emoção espontânea. Entre eles, além dos já citados, podem ser destacados o Mama na Vaca, com seu jeito libertário; o Bloco da Praia, que questiona a mercantilização da cidade; o Toca Raul Agremiação Psicodélica, que ecoa a mensagem do roqueiro baiano e garante que “nós não vamos pagar nada”; os Filhos do Tcha Tcha, das ocupações urbanas do Zilah Spósito, Rosa Leão e Esperança; e o Bloco do Queixinho, que apoia as iniciativas de caráter plural e democrático.

Pode ser que alguns enxerguem no carnaval um uso exacerbado da liberdade, que perderia sua pertinência em razão dos excessos. Talvez seja exatamente o contrário. Mesmo os mais renitentes liberais devem concordar que a liberdade dos modernos vai adiante do conceito clássico. Para os antigos, ser livre era ser cidadão numa sociedade de escravos. O indivíduo só era soberano nas questões públicas, ficando a dimensão privada fora do jogo. É o tipo de liberdade que agrada muito aos conservadores.

No entanto, com o liberalismo que remonta a Benjamin Constant – que, como se vê, nem é tão novo assim –, a liberdade é o direito “de não se submeter senão às leis, de não ser preso, nem detido, nem condenado, nem maltratado de nenhuma maneira, pelo efeito da vontade arbitrária de um ou de vários indivíduos”. Além disso, a livre expressão da opinião é forte convicção do liberalismo moderno. Mais que isso, é um terreno no qual o indivíduo conta, e muito, na contabilidade geral da liberdade. É um tipo de liberdade que agrada muito aos foliões.

A festa, como a luta, continua.

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