Filme 'Ninfomaníaca' mergulha no tema do amor e do prazer

Filme do cineasta dinamarquês Lars von Trier tem referências que o aproximam da investigação de Sigmund Freud sobre a sexualidade feminina

15/02/2014 00:13
Christian Geisnaes/Divulgação
Ninfomaníaca, de Lars von Trier, foi dividido em capítulos: ainda há muita surpresa e exasperação à espera do espectador na sequência que não tem data para estrear (foto: Christian Geisnaes/Divulgação)
Izabel Haddad Marques Massara e Guilherme Massara Rocha*

Forget about love. Eis a expressão com que o cineasta dinamarquês Lars von Trier apresenta ao público seu novo filme, Ninfomaníaca. A personagem principal, Joe, vivida por Charlote Gainsbourg, é uma mulher atormentada por uma compulsão sexual e pela culpa aterradora de ser como ela diz “um ser humano ruim”. O filme tem como primeira cena um beco gélido e escuro, em que se avista o corpo da moça machucada e desacordada no chão. Depois de ser resgatada desse lugar inóspito por um senhor que havia saído à rua para fazer suas compras na mercearia da esquina, Joe aparece já na casa de Seligman, seu benfeitor, deitada numa cama, com uma xícara de chá com leite nas mãos. É nesse cenário que ela permanece todo o filme, relatando ao velho seus sintomas ninfomaníacos e os encontros sexuais com toda espécie de homens.

No pôster de propaganda do filme, Von Trier lança mão de um símbolo, dois parênteses em oposição, para fazer uma analogia à arquitetura do órgão sexual feminino. Não por acaso, a fim de abordar a vida sexual de uma mulher, ele inventa para as primeiras palavras da protagonista a seguinte expressão: “Aos dois anos descobri minha boceta”. A sexualidade feminina é abordada de uma forma desconcertante pela tela da fantasia de Joe. Durante seus relatos, que parecem às vezes fantasiosos, recolhemos os signos de um flerte com as descobertas de um outro senhor que também alarmou seus contemporâneos com suas investigações sobre a sexualidade, Sigmund Freud. Muitas das alegorias que entremeiam o relato de Joe e as respostas de Seligman a seus prazeres e sofrimentos contumazes remetem a uma relação direta e indisfarçável com a psicanálise, mais especificamente a fragmentos de um caso atendido pelo dr. Freud e por ele publicado em 1905.

“Ninfas visíveis ao fundo de um bosque denso.” É com essa alegoria que Dora, uma jovem vienense do século 19, descreveu, em sua análise pessoal, um de seus sonhos ao pai da psicanálise. A moça relata seus devaneios noturnos ao psicanalista, dizendo que se via entrando em uma floresta densa e escura, na qual avistava ninfas ao longe. O cenário pitoresco não deixou dúvidas a Freud: “Ali estava uma geografia simbólica do sexo!”. Além disso, as palavras ninfas e ninfeácea, que em alemão se traduzem ambas por nymphen, são usadas como termos médicos para descrever uma das estruturas da vulva feminina, os pequenos lábios. O uso desses termos pela paciente levou o psicanalista a suspeitar de que Dora os havia pesquisado nos livros de anatomia do pai, médico. Ela também havia descoberto o órgão sexual feminino em tenra idade, brincando. Trier roteiriza tais cenas, que reaparecem porventura em versões quase literais, com sua lancinante aptidão para capturar os traços, vastíssimos, das afecções sensíveis humanas. Traços que, liminarmente, convergem para os pormenores perversos e polimorfos da sexualidade humana, o enigma que nesse filme parece reunir, em torno de si, artista e psicanalista.

Ainda no sonho, o momento em que Dora adentra a floresta deflagra o ponto de maior angústia da narrativa. Ela hesita em prosseguir e parece imobilizada por um sentimento qualquer. Segundo Lacan, psicanalista que releu a obra de Freud, podemos reconhecer nisso o real de um ponto cego da sexualidade feminina, a busca por uma “feminilidade corporal”. Dora havia chegado até Freud atormentada por um cenário florido de sintomas histéricos e, entre suas inquietações, o psicanalista reconhecia a dificuldade de lidar com o próprio desejo sexual por um homem. Frau Dora, assim como Joe, a musa do filme de Trier, vive às voltas não só com questões sobre o amor, mas com curiosidades sobre o funcionamento sexual do próprio corpo.

Seria pura coincidência que a protagonista relate passagens sobre suas aventuras eróticas a Seligman? Esse personagem aparece em todo o filme no cenário de um quarto escuro, na companhia de Joe, que permanece deitada contando sua vida como se estivesse numa sessão de psicanálise. Ao escutá-la por horas a fio, ele interpõe à sua interlocutora cenários que parecem visar subverter algumas de suas impressões e convicções. Lança mão de vários elementos intertextuais, como a matemática, a música e a arte da pesca, para dar ordem ao caos que encontra na vida dessa mulher, atormentada por uma culpa aterradora. É interessante notar que embora a moça relate os mais lascivos episódios de ninfomania – momentos em que insiste na ideia de que é um ser humano ruim –, subitamente ela se transfigura numa donzela do século 19, num instante sedutoramente indiferente e blasé, e noutras assolada pelo mesmo complexo de culpa que conduzia ao divã as ditas histéricas de Freud.

Trier põe em questão a crença secular na debilidade moral do libertino. Joe é uma personagem que, desde a aurora da narrativa, insiste em torturar-se diante da constatação de uma conduta erótica errática, instrumentalizada e inimiga de quaisquer vestígios de sentimentalidade. Na juventude, torna-se signatária de uma sociedade feminina secreta que cultuava a exploração ilimitada da sensualidade erótica, todavia marcada por um ideal explícito de que tais atos fizessem signo da deploração do amor. “Mea vulva, mea maxima vulva”, eis o lema em que se pode ler, nas sombras da forma semântica de onde provém, o substrato de uma moralidade tirânica que resulta no paradoxo de uma compulsão ao gozo. Numa manobra de mestre, Von Trier nos apresenta a ninfomania como o equivalente empírico de um autoflagelo imaginário, que provém de um sinistro algoz interior.

Despida de sua aura mística de liberdade rara e contumaz dos interditos e pudores sobre os quais são fundados os vínculos sociais, a ninfomania é estabelecida como fenômeno subordinado a um ordenamento rígido e sistemático. Um golpe de dados que vislumbra produzir, para em seguida aboli-lo, o acaso. Errância e circularidade, como as entediantes caminhadas que Joe impõe a si própria, no interior do denso bosque de seu inconsciente. Vitimada de uma culpabilidade liminar pela renúncia ao desejo – ou quiçá diante da impossibilidade de acessá-lo – resta ao sujeito sucumbir às exortações ao gozo ilimitado, sob a regência de um supereu cruel. Somente o amor, lembrara Lacan, permite ao gozo condescender ao desejo. Quando, do interior mesmo de sua sociedade secreta, é sugerido a Joe que “o amor é o segredo do sexo”, eis onde algo se torna ilegível, criptografado, quiçá irremediavelmente.

Sexo e afeto


Assim como Dora, Joe estava também às voltas com inquietações a respeito do corpo feminino, principalmente sobre seu órgão sexual. Há no filme inegavelmente duas questões eletivas. A inquietação de uma mulher sobre como lidar com seu corpo que demanda a todo tempo um prazer absoluto e compulsivo, e a dificuldade atroz de lidar com o amor por um homem. Joe passa pela infância e a adolescência à procura de brincadeiras nas quais seu corpo comparece como objeto manipulado e excitado. Sua errância amorosa é entrecortada no filme por cenas onde ela se lembra da relação com o pai, um homem sedutor, que aparece lhe ensinando sobre o corpo das árvores num bosque denso de uma floresta. O testemunho da vida que surge nos brotos negros da árvore favorita do pai durante o inverno, o freixo, deixa entrever a maneira como Joe passa a lidar com esse desabrochar da sexualidade feminina. A pergunta que ela não cessa de dirigir ao pai seria, explícita ou silenciosamente, como pode ressurgir a vida de um corpo que parece mortificado. Do corpo das árvores – que deixam despidas suas almas no inverno – ao corpo de mulher, vai Joe se debatendo como pode entre a fidelidade ao pai e a relação difícil com uma mãe insensível e distante.

Ao longo de seu relato trágico, recorda que se socorria de muitos homens que, reunidos, produziam uma polifonia de vozes. Entretanto, somadas todas essas vozes que ela recolhe ao acaso em cada um de seus encontros resultava a imagem de um só amante, o pai. Em um determinado momento da trama, Joe conta que passou a classificar os homens em três tipos. O que lhe ofertava um prazer masturbatório, o que a subjugava como se fosse uma presa indefesa, e um terceiro espécime, que a amava. No momento do encontro com o objeto de amor, o caos em que vivia começa a esboçar contornos de uma superficial organização. A ordem provinha da constatação de uma repetição ditada pelas reminiscências dos traços físicos do pai que se misturam àqueles encontrados no derradeiro amante, Jerome. Em Jerome não há apenas inscrito seu próprio nome, Joe, mas todas as demais qualidades que ela venerava em um homem. Ao se consagrar a seus encontros fortuitos, eis que ela inadvertidamente tropeça nas dobras do amor. Tais signos, o diretor dinamarquês os recolhe em negativo, no encadeamento de imagens e sons que presentificam sua aura. Identificada ao pai, a jovem se defende recusando, do amor, seu efeito feminizante. Desdenha de gestos, sobretudo de seus amantes, em que a violência e a virilidade se dissolvem na delicadeza, no desamparo, no exílio leve e inútil do ato de comer um croissant usando um garfo.

Sabidamente em sua filmografia, as mulheres de Von Trier consubstanciam uma ficção do ilimitado, num espectro que atravessa, rumo à devastação, farta palheta de prazeres soberanos e amorais. Mas subitamente Joe se depara com uma frigidez sintomática. No decorrer de seu encontro amoroso com Jerome produz-se uma insensibilidade para o gozo sexual. Sintoma para o qual o reencontro traumático com os signos da presença paterna talvez não sejam indiferentes. A frase que a amiga de Joe sussurra em seus ouvidos na adolescência tem um efeito às avessas, pois para essa ninfomaníaca “o amor não era o melhor ingrediente do sexo”, mas sim seu maior impasse. A ideia de Freud sobre uma divisão na esfera do amor poderia explicar essa espécie de sintoma sexual. O amor e a fruição sexual são, nalguns seres humanos, mutuamente excludentes num mesmo objeto. Assim se passa com Joe, que separa com precisão, ao modo de uma posição masculina, os homens com quem se deita daquele que só pode amar.

A ninfomania advém sob as lentes de Von Trier na qualidade de uma redução do múltiplo à unidade, emoldurada pelo quadro mais banal e monótono de um certo caroço irredutível da fantasia erótica. Freud adivinhara a forma da perversão masculina na paixão pelo traço, pela adequação a uma certa imagem inerte a que se vê amalgamado, na fornalha da fantasia, o diverso das identidades dos objetos sexuais. Paixão de gozar de um fragmento eletivo do corpo, extraído da diversidade material e anímica em que se suporta. No campo do feminino, ao contrário, nos revela Von Trier, o corpo é o que se suporta do reencontro com um semblante redivivo – esse Eros da gramática freudiana – e que vibra como a sombra de um modo de repartir os cabelos, de um trejeito do olhar, de mãos que profanam a carne menos com sua força que com sua assinatura.

Nessa que é ainda a primeira parte do filme, Jerome, a quem Joe pede que “preencha todos os seus buracos”, produz um ponto de basta na errância do gozo ninfomaníaco. Talvez seja possível arriscar o palpite de que embora o lema “forget about love” anuncie o que se narra em Ninfomaníaca, eis que se pode encontrar nos confins de um trajeto errático e aparentemente irreconciliador um certo élan romântico. No sentido vienense da palavra. Mas em se tratando inapelavelmente de um dos mais surpreendentes diretores contemporâneos, aguardemos o porvir – e certamente as surpresas e reviravoltas – da sequência prometida do filme.

. Izabel Haddad Marques Massara é psicanalista e doutoranda em psicologia. Guilherme Massara Rocha é psicanalista e professor da UFMG.

MAIS SOBRE PENSAR