Eduardo Coutinho se manteve atento ao destino de cada um de seus colaboradores

Com o início da ditadura militar, a equipe envolvida no documentário 'Cabra Marcado para morrer' precisou fugir das forças repressivas

por 08/02/2014 00:13
Sesc SP/Divulgação
(foto: Sesc SP/Divulgação)
Vladimir Carvalho/Especial para o Estado de Minas


Só nos restava esconder o equipamento mais leve para salvá-lo, como câmera, tripé e acessórios. Fui então com seu João Daniel, um senhor camponês, ajudante da produção, a uma pequena gruta no fundo do vale e ali depositamos a nossa carga, cobrindo tudo com a ramagem que cortamos das árvores, deixando por conta da memória do fiel companheiro uma possível localização no futuro. Esse equipamento seria salvo depois, reclamado que foi às autoridades por Gerson Tavares, que o alugara ao CPC da UNE. Parte do negativo foi extraviada pelos órgãos de repressão do Recife e parte foi salva por gestões junto à Líder, laboratório carioca que processava nosso material. Os copiões ficaram por muitos anos sob a guarda do cineasta David Neves, que usou a casa do pai, general insuspeito, como abrigo de tão precioso pacote.

Aquele 1º de abril ficou na minha memória como o mais longo dia de minha vida. Ilhados naqueles cafundós, sem perspectivas de escapar das garras da repressão militar, nosso medo aumentava à medida que alguns camponeses, nossos olheiros, iam regressando da cidade e contando que os jipões do Exército estavam a caminho de Galileia. A noite caiu, nos despedimos e fomos com João Daniel, nosso sábio guia naquela escuridão, caminhando por picadas, nos homiziar num capão de mato, nos arranchando sob uma árvore de grande copa. Éramos um grupo de mais ou menos nove ou 10 pessoas. Coutinho, Fernando Duarte, Antonio Carlos da Fontoura, Mário Rocha, assistente de Duarte, sua mulher, Elisabeth, que chegara do Rio para visitar o marido, dona Elisabeth Teixeira, Marcos Farias e eu. Também tenho a vaga lembrança que também estava o ator pernambucano Leandro Filho.

Em silêncio absoluto, só nos comunicávamos por sinais e nos arranjamos ali de qualquer jeito, transidos de pavor. Havia conosco uma lanterna de que não cogitamos e Marcos, por conta do dinheiro da produção em seu poder, carregava um revólver absolutamente inútil para aquela ocasião. Pode-se imaginar, conhecendo-se o espírito irreverente de Coutinho, quantas gozações não rolaram em cima do autor de A cartomante por conta desse 38 sem futuro. Alma fresca, incapaz de matar uma mosca, Marcos faleceu em 1984, sem jamais ter de fato usado uma arma de fogo.

Para aumentar a paúra, lá pelas tantas apareceu um sujeito na maior boa-fé para avisar que “os homens” haviam estado no engenho, mas já tinham se retirado e que a gente podia chegar. Mas o medo é bom conselheiro e demos calado por resposta. E nos deixamos ficar ali até o sol nascer. Nosso plano era deixar o esconderijo e alcançar a estrada principal para o Recife, tomando um ônibus para aquela cidade, e assim o fizemos, dividindo-nos em grupos de dois e de três, para não darmos na vista e, meio camuflados, ganhamos a estrada.

Mal disfarçados  Em pouco tempo, tomando por um atalho no canavial, Coutinho, eu e dona Elisabeth Teixeira, simulando um pequeno grupo familiar, estávamos na beira da rodovia para a capital, misturados a um grupo de camponeses que esperavam o coletivo. Aparentemente, não tomaram conhecimento de nós. Fisicamente, me confundo fácil com a massa: moreno, de baixa estatura e sem óculos, é mole. Dona Elisabeth, porém, vivia um drama por ser já muito conhecida no meio rural do Nordeste e a qualquer momento poderia ser identificada.

Coutinho, muito branco, sem dispensar os óculos de míope, pensava que o chapéu de palha que usava e as calças arregaçadas à moda caipira eram suficientes para ocultá-lo. O ônibus chegou, entramos de roldão com outras pessoas e “rezamos” durante todo o trajeto para que o ônibus não fosse parado pelas patrulhas que se viam pela estrada. Chegamos finalmente ao Recife e, a partir dali, foi praticamente cada um por si: a ordem era escapar da caça às bruxas.

Eu fui previamente escolhido para dar proteção e destino a dona Elisabeth. Minha condição de nordestino e amigo dela desde antes das filmagens me permitiria armar um esquema, preservando-a de uma iminente prisão. Levei-a para a casa de uma parenta no Barro, subúrbio do Recife, e aí fiquei mais à vontade com a chegada de minha mulher, Maria do Socorro, que havia sido presa em Vitória de Santo Antão, onde fora em busca de me encontrar, mas depois liberada. Por isso, temíamos que ela tivesse sido seguida. Protelávamos em busca de uma saída, quando, dias depois, o marido de minha prima, nosso hospedeiro, não suportando a pressão, vendo as fotos da viúva de João Pedro nos jornais e na televisão, entrou num tremendo cagaço e uma hora explodiu: não podíamos mais permanecer.

Foi uma humilhação para mim diante de dona Elisabeth, mas pedi um tempo e, enquanto isso, ela descobriu em seus guardados o endereço de um ex-companheiro de trabalho de João Pedro numa pedreira de Recife. Fui preventivamente ao encontro deste senhor em Cavaleiro, nos confins da capital, garantindo com ele, Manuel Serafim, a salvaguarda da amiga. Tivemos por sorte ótima ideia para disfarçar dona Elisabeth. Maria do Socorro costurou um vestido de chitão de cores vivas para ela, oxigenamos seus cabelos, agora cortados e penteados, e o resto, o rouge e o batom, se encarregaram de transformá-la em quase outra pessoa. Até eu me surpreendi depois de acabada a maquiagem. Elisabeth estava pronta para sair à rua sem ser identificada. Parecia agora uma perfeita dama alegre. Coitada, tão digna, tão autêntica, ter de passar por situação tão ultrajante. Ainda hoje sinto remorso, mas não tínhamos outra saída.

Memória e tragédia Escolhemos a noite para a travessia até a casa de Manuel Serafim por ser menor a exposição daquela “personagem” e fui levá-la naquele fim de linha, onde nos esperava o caboclo inteligente e bondoso, o mesmo que no filme descreve em minúcias a fisionomia de João Pedro e o tipo de líder que este era. Em lance emocionante, ele e sua mulher se desmancharam em atenção e carinho para com a amiga que há anos não viam (“Ela é como nossa irmã”, diziam e se abraçavam com ela), tanto que me senti cônscio de que a viúva estava realmente em segurança e dali para a frente desobrigado da tarefa. Saí de Cavaleiro direto para dar a notícia a Coutinho, homiziado na casa de amigos em Olinda, e depois disso fui cuidar da vida, àquela altura incerta e à mercê do clima opressivo que se instalara.

Seis meses depois, com uma identidade falsa, saí da toca nos arredores de Campina Grande e fui reencontrar Coutinho no Rio de Janeiro. Exemplarmente ético e generoso, e depois de se livrar da prisão em Recife, ele ainda se preocupava com a sorte de cada um de seus colaboradores. E foi assim que me acolheu e se empenhou até em me encaixar como assistente de Arnaldo Jabor em dois filmes, o que me deu alento e condições de atravessar o longo e pesado período que se seguiu. Com relação a Elisabeth, ele foi absolutamente magnânimo e estoico, só descansando, anos depois, quando amparou-a, comprando, com recursos próprios, uma casa para ela.

Esta é uma longa história, aos poucos e a custo lembrada, e apenas reordenada – depois de passado o terrível impacto do último fim de semana, quando o país estremeceu com a notícia da morte de Eduardo Coutinho, nas dilacerantes circunstâncias em que ocorreu, trucidado pelo próprio filho. Insondáveis caminhos do ser humano! Tudo diametralmente incompatível com a perspectiva de vida e a mansa, embora tensa, natureza do autor de Cabra marcado para morrer.

Inaudita cogitação se interpõe na consternação geral, pois os fatos gritam além do tumulto e não podemos afastá-la: impossível não enxergar nessa brutal tragédia que sobre ele se abateu, como nos fados gregos, uma pavorosa semelhança com a história do clã sertanejo dos Teixeiras – antes e pós-filme –, com suicídio e luta fratricida de filhos se matando diante de Elisabeth, a mater dolorosa. Não obstante, o tempo baixará como um manto inexorável sobre a cena, quem sabe, para preservar até um dia a memória dela.

Vladimir Carvalho é cineasta e documentarista, diretor de O país de São Saruê, O homem de areia e Rock Brasília: a era de ouro, entre outros.

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