Entre Holden e Seymour

Biografia de Shields e Salerno anuncia a publicação de cinco obras inéditas de Salinger até 2020. O apanhador... ainda atrai a atenção de adolescentes e pacifica pais em busca de diálogo com os filhos

por 18/01/2014 00:13
Bettmann/Corbis/Reproduçao
Bettmann/Corbis/Reproduçao (foto: Bettmann/Corbis/Reproduçao)
João Paulo

 

Shields e Salerno escreveram Salinger e produziram o documentário de mesmo nome para responder a três perguntas: por que ele deixou de publicar; por que se retirou do mundo; o que escreveu em seu bunker defeso em Cornish, enquanto via naufragrar seus relacionamentos pessoais, familiares e afetivos?. São boas questões, mas não são certamente as mais importantes. Olhar de sobrevoo, fica faltando a consideração às obras e ideias de Salinger. Na verdade, fica faltando Salinger. Depois de 700 páginas, David Shields e Shane Salerno sintetizam suas conclusões em 10 “problemas”.

O primeiro é a falta do testículo, que teria afastado o escritor de seus semelhantes, além de diminuir sua autoestima; o segundo, a perda de Oona para um homem mais velho e mais famoso; o terceiro, o trauma da guerra (“a guerra o criou”); o quarto, a conversão ao vedanta e o afastamento do mundo material; o quinto, o refúgio em Cornish, uma fuga da vida social e do secularismo nova-iorquino; o sexto, os casamentos; o sétimo, as crianças, já que Salinger prezava mais seus filhos ficcionais (Holden e a família Glass) do que os de carne e osso.

Na lista de Shields e Salermo, o oitavo problema foram as garotas, com a fixação do escritor por jovens adolescentes à beira da entrada no terreno da sexualidade, num misto de pureza e desejo; em nono vinha o isolamento, com a contraditória inclinação para lembrar o público o tempo todo que ele era um recluso; e, por fim, em décimo lugar, o desapego, a tentativa de se livrar de suas feridas reais e imaginárias por meio da arte – as sucessivas tentativa de cura o aniquilaram como sujeito, embora em alguns momentos tenham ajudado a constituir o artista.

Mas a grande revelação de Salinger está no último capítulo, “Segredos”. Os autores garantem que o escritor nunca deixou de trabalhar (o que já se sabia) e que organizava cuidadosamente sua produção, tendo deixado pelo menos cinco livros completos, que serão publicados entre 2015 e 2020. A grande notícia, de acordo com os biógrafos, foi comprovada por fontes seguras, embora o filho e responsável pelo espólio, Matthew, não confirme. O próprio Salinger já havia deixado nas entrelinhas (e em orelhas de seus livros) que vinha trabalhando em novas histórias. O que os biógrafos cravam, entretanto, é não apenas a quantidade exata de originais, como também o tema de cada um deles.

O primeiro livro a ser publicado postumamente no ano que vem reunirá as histórias da família Glass; em seguida, chegará ao leitor um romance sobre a primeira mulher, Sylvia Welter (acusada por Shields e Salerno de ser informante da Gestapo, que manteria um romance com o sargento X do conto “Para Esmé, com amor e sordidez”). Na sequência, uma novela em forma de diário de um agente da contrainformação, sobre a Segunda Guerra Mundial; um manual de filosofia vendanta por meio de histórias edificantes; e, finalmente, mais Holden Caulfield. O eterno herói de O apanhador no campo de centeio vai ressurgir em um conto de 12 páginas, de 1942, totalmente reformulado, ao lado de seis novas histórias que desenham a genealogia da família Caufield.

Sobre o filme Salinger, o trailler disponível no YouTube deixa entrever uma pegada sensacionalista, com depoimentos de atores de Hollywood falando da importância de O apanhador… em suas vidas (uma bobagem recorrente), ao lado de especulações sobre a relação com adolescentes e inspiração do assassinato de John Lennon e do atentado ao ex-presidente Ronald Reagan. Em suma, tudo que Salinger desprezava em Hollywood parece ter se armado contra ele. “O documentário não respeitou o espírito, a seriedade e a qualidade do trabalho artístico de Salinger”, escreveu o editor de cinema do Village Voice, Alan Scherstuhl. É mais ou menos o mesmo incômodo que fica da leitura do livro.

Numa conclusão questionável, os biógrafos afirmam que a vida de Salinger foi “um suicídio em câmera lenta”, certamente em referência a personagens seus que se matam, como Seymour e Teddy. Para um homem que viveu 91 anos, sem deixar de trabalhar até o último de seus dias e de refletir sobre o sentido da existência, a afirmação chega a ser risível. Salinger morreu rompido com o mundo real, mas sua vida foi uma tentativa desesperada, e por vezes tocante, de tentar encontrar liames possíveis entre o mundo interior e o lado de fora. Afinal, e não precisa ser versado em vedanta para chegar a essa conclusão, somos todos suicidas adiados. A vida faz seu trabalho e sabe a hora de dar por encerrada a peleja sob o Sol.

PAIS E FILHOS A biografia Salinger serve ainda para repor antigas questõe. Por que ler Salinger hoje? O que um autor tão tipicamente dos anos 1940 e 1950, que em 1965 deixa de publicar para sempre, tem a dizer ao jovem de hoje? O fato é que seus livros continuam sendo vendidos e amados e parecem responder a questões que fazem parte do universo dos adolescentes, mesmo em contexto tão diverso. As pessoas ainda costumam, mais de 60 anos depois, presentear os jovens com volumes de O apanhador no campo de centeio.

Há, ainda, uma avaliação diferenciada do romance e dos contos do autor. Enquanto a saga de Holden Caulfield parece não corresponder à expectativa de uma segunda leitura mais madura, os contos se mantêm como exemplos de arte literária, sublime em alguns momentos. O Salinger estilista ainda se presta a releituras, o ideólogo pode ter ficado para trás, junto com as incoerências da puberdade.

O apanhador no campo de centeio não fez sucesso por acaso. É o tipo de livro que é esperado e que quando chega toma conta do território. Salinger captou, como pouca gente antes e depois dele, o impulso que faz do adolescente um tipo tão desajustado e carente de quem o entenda. É como se o jovem fosse o hardware da insatisfação com o mundo e o romance o software que tornasse tudo mais compreensível. Salinger deu conteúdo a um sentimento de inadequação.

Além disso, seu personagem, Holden, é urbano, vive problemas típicos da classe média e não se sente em casa no mundo. Tudo isso coroado por uma inteligência acima da média e uma sensibilidade quase doentia. Quem, aos 14 anos, não se identifica com esse perfil, levante a mão. Para completar uma possível explicação do sucesso do romance, Salinger cria uma voz literária e inaugura um modo de expressão que usa gírias e palavreado pouco literário. Dá à luz um estilo.

Para alguns especialistas, como Louis Menard, Salinger vai ainda mais longe: cria um novo gênero. Dessa forma, cada geração terá, a partir dos anos 1950, uma nova tentativa de rever o mesmo personagem no seu próprio contexto. Fariam parte do gênero O apanhador..., por exemplo, romances como A redoma de vidro, de Silvia Plath (1963); Medo e delírio em Las Vegas, de Hunther Thompson (1971); Brilho da noite, cidade grande, de Jay McInerney (1984); e Uma comovente obra de espantoso talento, de Dave Eggers (2000), para ficar apenas nos EUA. Sem falar em filmes como Os incompreendidos e Juventude transviada.

No entanto, parece faltar uma explicação mais humana para o sucesso dessa “lengalenga tipo David Copperfiled”. Por que será, por exemplo, que os pais dão o livro de presente para os filhos adolescentes? Certamente, não é para que eles fujam de casa, se embebedem e procurem prostitutas. Parece haver uma dialética entre inocência e amadurecimento que perpassa a trama de Salinger. Holden, no fim das contas, não gosta do que vê à volta e acaba sofrendo um colapso, mas percebe que tem sentimentos bons dos quais não quer abrir mão.

Talvez essa seja uma definição um pouco constrangida do processo educacional: queremos que nossos filhos sejam autênticos e tenham condições de desafiar o mundo e combater o que não concordam. Mas ao mesmo tempo torcemos para que sejam dotados de bom senso para entender os limites da revolta. Holden Caulfield parece lembrar a cada pai o jovem que um dia ele foi e que, por interposta pessoa, quer mostrar a seus filhos: “Olhe como eu era legal!”. E, quem sabe, esperem do filho um reconhecimento por suas capitulações: “Você até que não é tão ruim assim!”.

A crítica literária nunca se acertou com O apanhador no campo de centeio. Entre escritores, há desde entusiastas como Faulkner e Hemingway, a detratores como Mary McCarthy. Uns conseguem perceber a tragédia que boia em meio ao vocabulário vulgar e à personalidade doentia do personagem central; outros atacam a fuga de temas fundamentais, sobretudo o sexo, que faz da obra de Salinger, muito mais que um livro sobre adolescentes, um romance em si adolescente.

Do romance para os contos, Salinger avança tanto em termos humanos como literários. A família Glass é sua grande criação. Alguns contos estão entre os melhores escritos no século 20, como ‘‘Para Esmé, com amor e sordidez’’, ‘‘Franny’’ e ‘‘Um dia ideal para os peixes-banana’’, uma obra-prima absoluta. Além dos contos, os Glass, com Seymour à frente, protagonizaram algumas novelas, como Pra cima com a vida moçada, Seymour uma introdução e Zooey. São livros ambiciosos em termos filosóficos e estéticos, com sofisticada estrutura literária. Se há um pecado neles é a proximidade da perfeição, que por vezes soa como exibicionismo.

Todos os filhos de Les e Bessie Glass, casal de atores de vaudeville, são geniais, participaram do programa radiofônico Crianças sabidas e alimentam ambições metafísicas diversas. Um se torna padre, outro ator, há o que morre na guerra, o professor de escrita literária (Buddy, alter ego de Salinger), a dona de casa e a moça em crise espiritual. Todos sideram em torno de Seymour, gênio e santo, que é apresentado no primeiro conto sobre a família Glass, no qual suicida em frente da esposa, depois de brincar com uma menina na praia.

A obra madura de Salinger, relida, está mais nos contos e novelas que no romance. No entanto, em matéria de leveza, talvez ele nunca tenha superado O apanhador no campo de centeio e seus livros posteriores se perdem por vezes na prolixidade. Há um movimento, contudo, que parece dar unidade ao projeto do autor: do retrato do jovem sensível até o rompimento com o mundo materialista, com a corajosa afirmação de novos valores. O desajuste não era um problema, como parece no primeiro momento, mas uma escolha livre.

Nesse meio do caminho entre a inocência e a reinvenção do destino humano, Salinger levou a própria vida com todas as suas provações e prazeres. Embora ele tenha feito de tudo para ser Seymour Glass, com seu invejável patrimônio de sabedoria e independência – até mesmo no gesto final – tudo conspirou para que ele continuasse com Holden Caufield na alma. Sua obra é expressão desse “fracasso”.

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