Considerada alienante em termos sociais e inepta artisticamente, a novela enfrenta preconceitos

por João Paulo 23/11/2013 00:13
João Miguel Jr./Divulgação
(foto: João Miguel Jr./Divulgação)
Numa semana marcada pelo clímax de um processo que tomou anos do país, com a prisão dos réus do "mensalão", o fato que conquistou maior audiência na TV e nas redes sociais foi o capítulo da novela 'Amor à vida' em que o vilão Félix é desmascarado (aliás, ele é desmascarado de 10 em 10 capítulos por motivos diversos). O primeiro julgamento, mais apressado, aponta para o baixo nível de politização do brasileiro, que estaria deixando de lado assuntos importantes para dedicar-se a seguir um dramalhão. Nada mais que uma versão tupiniquim do diagnóstico marxista: a novela é o ópio do povo.

A teledramaturgia brasileira nunca foi muito valorizada pelos intelectuais. Pelo menos por parte deles. Dias Gomes, um dramaturgo sofisticado que escreveu entre outros clássicos O pagador de promessas, percebeu o potencial do folhetim televisivo, tendo se dedicado às novelas por longo período de sua vida. Comunista, ele sabia que Marx, em seu juízo sobre a religião, identificava o papel mobilizador dos ritos, não apenas seu caráter alienante. Com O bem-amado, Dias Gomes obteve o maior sucesso de sua carreira e mostrou que era possível divertir sem amortecer o pensamento.

Além de Dias Gomes, outros nomes de respeito na literatura, no teatro e no cinema brasileiro ensaiaram carreira na televisão, como Jorge de Andrade, Bráulio Pedroso, Antônio Calmon, Bosco Brasil, Ferreira Gullar, Jorge Furtado, Mário Prata, Lauro César Muniz e Maria Adelaide Amaral. Essa inclinação para um veículo mais popular foi vista quase sempre com reservas. Mas contribuiu para alargar o repertório da dramaturgia para a TV, em termos de texto, recursos cênicos e temas.

Outro mito recorrente no tratamento das telenovelas no Brasil é o passadismo. Parece que tudo era genial e hoje é um lixo. Autores que foram massacrados a seu tempo são considerados clássicos atualmente. Até mesmo a mulher de Dias Gomes, Janete Clair, que era combatida sem trégua pela crítica, ganhou o reconhecimento póstumo por sua arte capaz de mobilizar a atenção de milhões de pessoas a cada noite. Milhões. O mesmo processo se deu com o cinema americano e com a literatura policial. Depois de recusados pela elite, passaram a compor patrimônio intelectual de seu tempo e se tornaram cults.

Considerada alienante em termos sociais e inepta artisticamente, a novela enfrentou mais uma muralha de discriminação. É o terceiro capítulo nessa história: as pessoas não gostam de espelho. Sem teoria, com uma estética compósita, que reuniu elementos do rádio, do teatro e do cinema, a telenovela foi aprendendo que sua aceitação está ligada à vida. Não que isso signifique uma tentação ao realismo, longe disso. Muitas vezes, a melhor forma de incorporar a dimensão simbólica da cultura popular é o sonho e fantasia desbragada, quase surreal.

Os enredos dos folhetins são esquemáticos, se dividem em núcleos e criaram alguns modelos que se tornaram canônicos. Há a novela de época, a comédia de situações, as tramas de classe média. Em todas elas habitam caracteres que parecem fluir de uma para outra: o pobre coitado, o ingênuo, o vilão, o lutador, o jovem apaixonado, o empresário rico, os humilhados e ofendidos. O espectador, como uma criança que pede que lhe contem sempre a mesma história para adormecer, assiste às novelas como quem se reencontra com as peças do jogo social que ele domina. O impulso é do reconhecimento, não da surpresa. O pulo do gato dos bons teledramaturgos é inverter o jogo.

Por fim há o último degrau do preconceito, que acusa as novelas de passar por cima da complexidadade da existência. Num contexto de vida privada inflacionada por redes sociais narcisistas, a novela propicia, ainda que com muitas limitações, a constituição de uma ágora na qual podem ser debatidos temas como discriminação racial, homofobia, corrupção, reforma agrária, saúde pública etc. Querer que esses assuntos sejam patrimônio de discussões teóricas é apenas elitismo. A vida é um novelão.

O mal-amado

O brasileiro é o povo que mais entende de novela no mundo, pela simples razão que faz as melhores produções do gênero. Os americanos são mestres nos seriados, superproduções sofisticadas, com roteiros de alto nível. É um produto diferente, mais bem acabado e com menos espaço para a participação do espectador. Os norte-americanos sabem do que o público precisa e dão a ele o que espera. Além disso, com amadurecimento técnico do cinema, têm uma obsessão pela qualidade. Os seriados são produto, mais individualizado, que ganha em eficácia, mas perde em empatia. A novela precisa ser assistida em conjunto, é uma criação coletiva que faz circular uma energia que se realiza publicamente.

De certa forma a singularidade psicológica de cada povo ganha representação em dois produtos da indústria de entretenimento. Quem assiste a um seriado compra um pacote, do qual é uma espécie de dono ou patrocinador. Assim, escolhe o gênero (do humor ao horror, passando por histórias de família, vampiro, máfia ou ilhas desertas) e frui o investimento. Quem acompanha uma novela não tem direito a nada e, ao mesmo tempo, é capaz de alterar o rumo da trama. O americano consome (como a classe média brasileira com sua indecente capacidade de emulação); o brasileiro convive.

Voltando a Amor à vida, de Walcyr Carrasco, fica difícil entender por meios racionais a razão do sucesso da produção. A novela é fraca em termos de dramaturgia e invenção, o que explica que os resumos dos capítulos seguintes não desestimulem a audiência. Em outras palavras, as pessoas não assistem ao folhetim para saber o que vai acontecer (todo mundo já sabe), mas para se reconhecer nos dramas humanos que circulam o personagem central, Félix, interpretado com brilhantismo por Mateus Solano. Félix é um vilão detestável, mas capaz de gerar identificação.


É comum que as pessoas comentem que o ator “trabalha bem”, como se, com esse juízo, explicassem por que se afeiçoam a um canalha. Mesmo o humor do personagem, sempre violento e de mau gosto, testa os limites do telespectador, como se ele se sentisse constrangido em achar graça de alguém como Félix. Amor à vida é uma novela em que o mal ganha todos os espaços: as pessoas são ambiciosas, mentirosas, fracas, preconceituosas. Um mensalão sem o recurso da cadeia redentora de nossas culpas.

Quem não gosta de novela não está perdendo apenas um bom programa, mas uma chance de entender um pouco melhor o Brasil. Quando a justiça se parece com vingança, há muito deixou de ser justiça. Como "mensalão" tucano vem aí, talvez seja a hora de chamar outro dramaturgo para conduzir o enredo. O final não vai ser feliz, mas pode ser mais verdadeiro. Se é para desligar a novela, que a realidade mostre mais competência.

jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br

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