Biografias ocupam espaço em permanente mutação entre ciência e arte, lenda e registro, conhecimento e imaginação

Discussão sobre biografias não-autorizadas ganhou força neste momento por evidenciar um conflito de direitos não equacionável: o da liberdade de expressão colocado em contraponto ao direito à privacidade

por Mozahir Salomão Bruck 16/11/2013 00:13
Gisele Freund/Reuters
Para a romancista Virginia Woolf, diferentemente do poeta, o biógrafo seria obrigado a aceitar em última instância o curso de uma vida real (foto: Gisele Freund/Reuters )
Exclusiva coincidência, passei a dedicar parte de meus estudos às biografias em 2003, mesmo ano em que teve início a vigência, no Brasil, do então novo Código Civil, que acolheu a polêmica proibição de publicação de biografias não autorizadas. Ou, para melhor entendimento, a exigência de permissão dos biografados (ou de seus herdeiros) para que as histórias de suas vidas possam ser contadas. Nesses pouco mais de 10 anos, confesso que nunca tinha visto a mídia e outras instâncias da sociedade dar tanto espaço e importância ao tema “biografias”. A recolha de Roberto Carlos em detalhes (Editora Planeta), em 2007, por determinação da Justiça, acatando pedido do cantor, foi, salvo melhor juízo, o momento mais intenso de discussões. Mas mesmo diante da gravidade da medida restritiva, o debate foi curto e deixou de fora o cerne da discussão que agora eclodiu: o direito à liberdade de expressão.

Ao que tudo indica, a discussão ganhou força neste momento por evidenciar um conflito de direitos não equacionável: o da liberdade de expressão colocado em contraponto ao direito à privacidade. Essa junção de artistas do Procure Saber reivindica, em sua plenitude, este último: o de decidir quando, quem e como suas trajetórias de vida serão contadas. Entendem que se a vida lhes pertence, as narrativas sobre elas também lhes são de domínio exclusivo. Mas narrativas têm propriedade? Mesmo entendendo ser o âmbito da privacidade um direito fundamental, como desconhecer que o direito à liberdade de expressão é um direito absoluto e, por isso mesmo, impossível de ser relativizado, com autorizações prévias ou acordos e negociações?

A polêmica está matizada, pode-se dizer assim, por grupos de questões de naturezas distintas: sobre essencialidades de direitos, sobre detenção de propriedades autorais e também sobre as biografias. No debate atual, as biografias colocam-se, talvez, menos como o centro da questão – que, como já se disse, trata-se de um embate acerca de direitos conflitivos – e mais como um mote que apenas o patrocina.

O trabalho biográfico estabelece-se a partir de operações que diretamente tocam e são tocadas por questões e aspectos fundantes da experiência e do conhecimento humano: o ético, o estético, o epistemológico, o ideológico e o psicológico. O espaço e o tempo. Sendo uma narrativa de natureza memorialística, a biografia se institui a partir de uma relação tensa com o tempo. Tem o objetivo de impedir o progressivo apagamento de personagens e seus feitos, seus efeitos e, se for essa a perspectiva, seus defeitos – ou seja, em tudo aquilo que esses atores se dispuseram de maneira mais vital no mundo. É um jogo entre temporalidade e significação. Entre vida e morte. As significações de uma vida que se distancia no tempo e que tendem a reduções e condensações, fazendo com que o que delas persista não seja uma essência, mas uma fórmula, um espectro.

Mas talvez o que mais desponte nas biografias seja sua circunstância paradoxal. Sendo as biografias, em geral, marcadas, caracteristicamente, por uma contratação que busca se basear na verdade e na tentativa de reposição efetiva de fatos e circunstâncias de uma trajetória de vida, elas acabam sendo, no entanto, em função desta substância e essência, atiradas a uma zona de sombreada e não definida entre a ciência e a arte, entre a lenda e o registro científico, e entre o conhecimento e a imaginação.

Tal circunstância paradoxal da biografia – estar aquém e além de muitas das características das narrativas nos campos em que acaba por ser enquadrada, desde a história, o jornalismo até a literatura – faz com que esta acabe se tornando objeto de percepções e conceituações difusas por parte de teóricos e estudiosos e, mesmo, dos leitores em geral. François Dosse (Le pari biographique) a denominou de gênero impuro, em função exatamente dessa natureza imprecisa. Já Virginia Woolf (The art of biographie), que foi uma atenta estudiosa e crítica das biografias, percebia-as como o resultado do trabalho não de um artista, mas de um artífice.

Para Woolf, na ficção e na poesia, a imaginação do artista, na sua mais alta intensidade, acende o que é perecível em fato; e constrói com o que é durável. Já o biógrafo seria obrigado a aceitar o que é perecível, o curso de uma vida real – construir com ele, incrustá-lo bem no tecido de seu trabalho. Por isso, o biógrafo estaria mais para um artífice, e seu trabalho não seria uma obra de arte, mas algo intermediário e localizado entre ambos. Para a escritora, a arte da biografia – se é que se pode chamá-la assim – seria a mais restrita das artes, pois tem sua prova bem à mão. Ao contrário da arte efetiva, sua matéria-prima é tangível.

Proximidade Se há uma contraindicação para a feitura de uma biografia é a de que o biógrafo seja alguém muito próximo do biografado ou de seus familiares. Para autores como Janet Malcom (A mulher calada), o biógrafo deve ser um “inimigo” da família do biografado. A jornalista e pesquisadora norte-americana Malcom analisou cinco biografias sobre a vida da poetisa Sylvia Platt, que se suicidou em 1963. A atenção de Malcom se volta especialmente para uma das biografias, Bitterfame, elaborada por Anne Stevenson e lançada em 1989. Mesmo considerando-a, de longe, a melhor das cinco biografias, Malcom desmonta o trabalho de Stevenson, a começar pelo prefácio da obra, em que a biógrafa assinala: “Toda biografia de Sylvia Platt escrita enquanto seus familiares e amigos ainda estão vivos precisa levar em consideração a vulnerabilidade dessas pessoas, mesmo que sua abrangência possa sofrer com isso”.

Para Malcom, Stevenson estabeleceu com o viúvo de Platt, Ted Hughes, uma relação de proximidade e cooperação pouco indicada e que resultou num trabalho que optou por manter-se na superfície da densa vida da poetisa. “Levar em conta, protestou Malcom, a vulnerabilidade! Dar mostras de contrição! Poupar os sentimentos alheios! Deixar de avançar até onde for possível! O que essa mulher estará pensando? A tarefa do biógrafo é satisfazer a curiosidade dos leitores, e não demarcar seus limites. Sua obrigação é sair a campo e, na volta, entregar tudo – os segredos malévolos que ardiam em silêncio nos arquivos. [...] Os familiares são os inimigos naturais dos biógrafos”.

Aspectos diversos como as contratações estabelecidas pelo biógrafo, tanto em relação ao biografado quanto ao leitorado, e as ferramentas, critérios, caminhos e soluções de natureza técnica e estética de que se vale para construir suas biografias, acabam por revelar a percepção e intencionalidades que tem o autor em relação à obra biográfica. Quem teve a oportunidade de ler a biografia sobre Roberto Carlos, construída por Paulo César de Araújo, sabe muito bem que, por si só, o livro não daria motivos ao cantor para que se opusesse e trabalhasse para cassar a publicação. Muito pelo contrário: chega a incomodar na biografia a postura abertamente laudatória do biógrafo, um assumido fã do cantor.

Ou seja, tecnicamente – em termos do que se espera do trabalho de investigação e revelação do biógrafo – é uma biografia frágil. E isso é tão evidente que Paulo César de Araújo insere no texto passagens autobiográficas, que atestam sua admiração por Roberto Carlos. Nada disso fez com que o cantor de Esse cara sou eu! poupasse a biografia. Obteve a proibição na Justiça, valendo-se do disposto no Código Civil brasileiro. Como anunciou recentemente pela mídia, Roberto só aceitaria uma biografia sobre sua vida narrada por ele mesmo. E pondera: “Só eu poderia dar todos os detalhes do que vivi e senti nos momentos de minha vida”.

E promete contar tudo sobre o acidente com o trem, em que perdeu a perna direita – como se ainda houvesse o que ser contado. Quando da proibição do livro de Paulo César de Araújo, entre os inúmeros comentários que circularam, um dava conta de que a reação judicial do cantor tinha se dado em função de o biógrafo abordar o tema do acidente. Difícil acreditar. Paulo César de Araújo narra o fato com timidez, dedicando-lhe pouco mais de dois parágrafos. Como já se disse, é uma biografia frágil, escrita por um biógrafo tímido, sobre a vida de um biografado arrogante.

Por outro lado, seria ingenuidade imaginar que os desvios, inverdades ou imagens equivocadas sobre qualquer pessoa pública sejam, de modo prevalente, cristalizados pelas biografias. Tais narrativas podem, pelo contrário, contribuir para que se desfaçam mitos que foram construídos pela memória coletiva. Dê-se como exemplo a excelente biografia Estrela solitária (Companhia das Letras), sobre a vida de Garrincha – também alvo de ação judicial e escrita por Ruy Castro.

O biógrafo apresenta dados suficientes para desmontar a percepção que o senso comum – com efetivo apoio da imprensa – alardeou e cristalizou sobre Garrincha: a ideia de que o incrível craque de pernas tortas – que tanta alegria deu ao Brasil – foi “esquecido” por toda a nação, tendo morrido pobre e abandonado. Uma meia-verdade. Pobre sim, mas não abandonado. Garrincha nunca foi esquecido pelo povo e recebeu, dos amigos, efetivo e generoso apoio – moral e mesmo financeiro – para que tentasse escapar da bebida. Mas insistia em aplicar seus mais ousados dribles contra si mesmo.

As biografias são, enfim, apenas mais um elemento do infinito universo da memória, que se substancia de mitos, imaginações, crenças sem fundamento e, também, claro, verdades. Uma substância informe que se rearranja, se recicla e se reconfigura permanentemente. E que nos dá uma única certeza em relação ao passado: ele nunca está concluído.


Mozahir Salomão Bruck é pesquisador da PUC Minas.

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