Eliane Brum defende que literatura e jornalismo têm compromisso com a emoção e a verdade

"Só sei viver escrevendo", diz escritora em entrevista ao Pensar

por Carlos Herculano Lopes 16/11/2013 00:13
Lilo Clareto/Divulgação
(foto: Lilo Clareto/Divulgação)
Uma das jornalistas mais reconhecidas do país, ganhadora de 40 prêmios nacionais e estrangeiros ao longo da carreira, a gaúcha Eliane Brum – desde 2010 atuando como repórter independente, depois de ter trabalhado em vários jornais e revistas brasileiros – é também cronista, ficcionista e documentarista, tendo codirigido, entre outros, o filme 'Uma história severina'. Nascida em Ijuí, no interior do Rio Grande do Sul, em 1966, ela é autora do romance 'Uma duas' e do livro de reportagem 'Coluna Prestes – o avesso da lenda', a vida que ninguém vê, com o qual ganhou o Prêmio Jabuti em 2007. “Só sei viver escrevendo. Termino ainda este ano um novo livro, que não é nem romance nem reportagem”, disse a escritora, em conversa com o Pensar.

Uma vez você disse que escrevia porque a vida lhe dói. Continua pensando assim? O que escrever significa para você?

Sim, escrevo para transformar dor em palavra. Essa possibilidade, que eu descobri ainda na infância, foi transformadora e me permitiu criar uma vida com sentido. Mas não é só dor o que percebo no mundo, mas também uma abissal delicadeza. Isso me move na reportagem, a delicadeza mesmo nas horas brutas. A frágil e intrincada teia de sentidos com que cada um inventa uma vida, a partir de muito pouco, quase nada. Escrever é minha expressão no mundo. É o que sou e também o que me torno a cada dia. Em um dos textos de A menina quebrada, escrevi sobre a declaração de morte de um grupo de guarani-kaiowá, no ano passado. Precisei, então, pesquisar o que era a palavra para esta etnia indígena, já que carta é palavra. Tanto o conceito quanto a experiência da palavra, para eles, são extremamente sofisticados e muito, muito bonitos. Palavra é também ou principalmente “palavra que age”. Encontrei ali o que busco ser neste mundo: “palavra que age”.

É também assim nas suas reportagens? Há alguma que emocionou você mais?

Todas as reportagens que faço me transformam. Ser repórter exige um gesto profundo de entrega em direção ao desconhecido que é o outro. Assim, tornei-me habitada por todos aqueles que abriram a porta da sua casa e da sua vida para me contar as suas histórias, suas vozes falam em mim. O povo brasileiro ou os vários povos brasileiros me fascinam com seus achados de linguagem e muitas vezes estive diante de analfabetos que faziam literatura pela boca. Então, não conseguiria escolher uma reportagem como aquela que mais me emocionou, porque me sentiria traindo todas as outras. Cada uma delas deixou uma marca em mim, uma marca que me tornou e me torna o que sou. Posso dizer que, no período mais recente, uma das reportagens  que mais me marcaram foi acompanhar os últimos 115 dias da vida de uma mulher com um câncer incurável. Esta foi a principal reportagem que fiz em dois anos trabalhando com a questão da morte – não a morte violenta, que em geral é o tema da imprensa, mas a morte escondida e silenciada na nossa época, que é a morte por doença e por velhice. Silenciada porque é a morte que a maioria de nós terá. Este silenciamento é a marca da nossa época. Mas confrontar-se com a morte é confrontar-se com a vida e por isso perdemos muito ao empreender essa tentativa desesperada e condenada ao fracasso de não lidar com a certeza de nossa finitude. A reportagem, que saiu na revista Época, foi também publicada no livro O olho da rua - uma repórter em busca da literatura da vida real, pela Editora Globo, de 2010.

O que nesta reportagem afetou você mais?

Me obrigou a um confronto que me levou diretamente àquela que é talvez a questão ao mesmo tempo mais crucial e mais negligenciada: a do tempo. Todas as mudanças que fiz e tenho feito na minha vida desde 2008 foram determinadas por esse enfrentamento. Alice, a mulher que confiou em mim a ponto de me deixar testemunhar o fim da sua vida e escrever uma história que ela jamais leria, tinha tido uma vida dura. Quando ela se aposentou e começou a viajar, a dançar e a se arriscar a outras experiências, veio o câncer. Em um dos nossos primeiros encontros, ela disse: “Quando tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado”. Era uma frase profunda e, desde então, a constante reapropriação do meu tempo, a descoberta do que é viver no meu tempo e não no tempo de um mundo regido pela velocidade e pela alienação da experiência, passou a ser meu desafio cotidiano. Mais do que um desafio, um ato de resistência.
 
Deste desafio, deste ato de resistência é que surgem suas histórias e crônicas?
Como eu era uma repórter escrevendo uma coluna de opinião, usava parte do processo de reportagem na produção de minhas colunas e crônicas. Isso significa que cada uma delas partia de um espanto e seguia uma investigação movida pelas dúvidas. Podia ser tanto uma observação do cotidiano, como no texto que dá nome ao livro, no qual testemunho o momento exato em que uma menina descobre que até as crianças quebram e que não há como colar nossos pedaços. Como podia partir da necessidade de refletir sobre um ângulo pouco abordado de uma notícia, como que tipo de pai Eike Batista podia demonstrar ser no acidente em que um de seus filhos atropelou e matou um ciclista, e o que isso revela sobre a paternidade em nossos dias. Ou mesmo as diferenças entre o Lula real e o Lula do cinema – e o que essas diferenças dizem da passagem dele pelo poder. Meu pacto com o leitor é de só tomar o seu tempo se acreditar que posso iluminar alguns cantos escuros de um acontecimento ou trazer para a luz o que chamo de “desacontecimentos” e não está no noticiário. Essa sempre foi a minha busca. Se consigo ou não, só os leitores podem dizer.

Você diz que a internet mudou o mundo. Como fazer desta ferramenta uma aliada?

A internet mudou o mundo, acho que isso já é um fato. É possível discutir como ela vem mudando e o que significam todas as novidades e desafios que ela nos trouxe, mas a mudança já aconteceu e continua em curso. A internet é um sonho que não sonhamos por falta de elementos para sonhá-lo. Nem mesmo os grandes escritores de ficção científica do século 20, tão competentes em antecipar e perceber realidades futuras, que hoje já se concretizaram, foram capazes de sonhar com a internet. Para o repórter, penso que a internet tem uma potência extraordinária.

De que maneira?
Ela ampliou as narrativas e os narradores, deu voz e meios de amplificá-la a quem não tinha, para que pudesse contar sua versão sobre a história, sobre o seu grupo e sobre si mesmo. Isso torna tudo mais rico e mais desafiador. Se o jornalismo quiser se manter como uma narrativa relevante sobre sua época histórica, terá que reforçar e qualificar aquela que é o seu diferencial: a reportagem. Se ficar disputando as notícias rápidas e rasas, que outros podem fazer e fazem, vai perder credibilidade, reputação e relevância. Ao suprimir os limites de espaço, a internet ainda nos dá a possibilidade de resgatar as grandes reportagens, os textos de profundidade, assim como as entrevistas longas, nas quais o entrevistado pode desenvolver a complexidade do seu pensamento. Acho uma enorme cegueira acreditar que a vocação da internet é a dos textos curtos e rápidos. Pode até ser usada para isso também, mas esta é a parte menos interessante para o jornalismo.
 
Você nasceu em Ijuí, no interior do Rio Grande do Sul, filha de família ligada à terra. Como foi que se deu a sua iniciação com as histórias?
A família do meu pai é da zona rural e essa é uma experiência que me assinala porque foi lá que eu comecei a ouvir as histórias dos meus tios, com suas bombachas puídas da vida na roça, um cigarro de palha no canto da boca, os dentes ruins, os rostos, os pés e as mãos vermelhas por causa da geada das madrugadas de inverno. Mas eles eram histórias, a vida era essa narrativa da vida, e eu era ao mesmo tempo estrangeira e parte daquele mundo. Só podia ser parte porque estrangeira. Sempre me senti assim. Acho que foi assim que me tornei “escutadeira”.

O que veio primeiro, a literatura ou o jornalismo?

Meu primeiro amor foi a literatura, porque a palavra escrita me deu a possibilidade de viver. Até descobrir os livros eu não sabia o que fazer com as histórias que escutava dos outros e mesmo de mim. A literatura arrancou a pesadeira do meu peito e alargou meu mundo de dentro, me dando uma outra geografia, na qual eu poderia ser a história que quisesse. E essa possibilidade de ser planta, bicho, princesa, alien, homem, velho, me salvou. Mas sempre vivi parte dentro, parte fora, sempre tive uma enorme curiosidade pelo mundo que é o outro, e foi isso que em levou para a reportagem. Preciso da ficção e da reportagem para viver. Como escritora, acho que minha voz na ficção é muito diferente da minha voz na reportagem e talvez por isso eu precise das duas para existir.

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