Herberto Helder prova que é um dos mais importantes poetas contemporâneos

por André Di Bernardi Batista Mendes 26/10/2013 00:13
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Wikimedia Commons (foto: Wikimedia Commons)
Quanto poemas cabem no coração de um homem? Quantas vidas vive o poeta português Herberto Helder? Quantas palavras, quantos sentidos cabem, sobem com mãos de gente, pelos versos de Herberto? Qual é o tamanho – imensurável – do silêncio que surge, que nasce dos poemas do livro Ou o poema contínuo, que reúne a alegria dos versos de um dos maiores poetas contemporâneos? Dono de liberdades, Herberto afina o seu canto, a sua arte literária como poucos. Todos os seus poemas são raras preciosidades.

Tudo é fantástico para os olhos de um poeta pronto. A poesia de Herberto descansa, assim, no surreal. Algumas palavras, alguns quadros, alguns filmes só podem nascer dos sonhos. Por isso a poesia de Herberto é repleta de descobertas, de surpresas a cada encontro. É como chover no molhado, é como cantar, simplesmente porque existem primavera e nuvens, distâncias e retornos, acordes regados de angústia. Isso para não dizer do lírico, que, para Herberto, é o mesmo que asa feita de esperanças. Herberto tenta ultrapassar, com flechas, a fugacidade do tempo (os poemas de Ou o poema contínuo meio que atravessam o espaço rumo ao indefinido). Poeta experimental, ou apenas poeta? A poesia de Herberto reverbera, repercute ao mesmo tempo que resplandece, como se jogada num sistema único de ecos e espelhos.

Herberto inventou uma antimáquina de produzir fogo. Brota do coração deste poeta único uma estridente fonte de águas. Nunca é fácil dizer, mas cada poema de Herberto se alimenta num moto-contínuo doido de sombras. Cada poema corre livre, num sem roteiro de signos que puxam signos, num atropelo de asas. Os poemas de Herberto são filhos de uma vertigem contínua. O nome do livro não mente, muito menos falseia quando apresenta a primeira chave para abrirmos um lugar, uma casa invisível de portas que não estão. Os poemas rechaçam, desprezam todo tipo de claustro, no que esta palavra tem de restrição, de limite. Monástico, Herberto finge que sabe das coisas quando diz de suas coisas, de seu quintal, de seu jardim.

Todos os poemas de Ou o poema contínuo nutrem-se de um mar; eles arquitetam ar e amplidão. Os poemas rompem um círculo de angústias, os poemas apagam todos os garranchos da tristeza. Os poemas são respiráveis quando carregam a leveza de uma fragilidade absurda. Herberto retira do irreal o substrato, uma espécie de essência para deixar fluir suas ideias incendiárias, incontornáveis. A mão auxilia o coração, e surge o poema. Esse tipo de poesia aponta para continuidades. Mas, de que é feito esse coração, o que transforma uma alma continuada? Herberto Helder é um escritor que preserva os seus mistérios.

“Eu devo rasgar minha face para que a tua face/ se encha de um minuto sobrenatural,/ devo murmurar cada coisa do mundo/ até que sejas o incêndio da minha voz.”

Bruta, dilacerante, a poesia de Herberto Helder carrega relâmpagos. O poeta invade como um doido, como um cavalo, os cânones, todas as normas carcomidas, para rir, com lágrimas prontas de si mesmo, para interferir com a sua dinâmica de pássaro, para sugerir outro tipo de regra, ainda não assimilada, mas verdadeira como a umidade das águas.

Nada lhe foge: “Penso que deve existir para cada um/ uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse/ virgem de sentido e que,/ vinda de um ponto fogoso da treva, batesse/ como um raio/ nos telhados de uma vida, e o céu/ com águas e astros/ caísse sobre esse rosto dormente, essa fechada/ exaltação”.

E o que, talvez, seja o melhor na poesia de Herberto Helder é que, como um organismo vivo, sujeito a intempéries, assustado de imprevistos, o melhor desta poesia é que ela não é infalível. Como um elefante, a poesia de Herberto está longe de ser invencível, fato que comove e gera empatia. Herberto parece ser um sujeito cheio de compaixão e ternura. Nos seus poemas, ele parece que procura partir, com delicadeza, a fina película que nos separa da fantasia. Certas palavras têm a voragem dos bichos e a ficção de Herberto, a sua poética, tem o som de cítaras. A poesia de Herberto é predisposta a sementes e umidades.

Mistério e revelação


Sonhar é um exercício que (não é sempre) no mais das vezes nos leva ao místico, que mora dentro da pedra do real. Sonhos são decifráveis até certo ponto, e é quando surge um carrossel feito de poesia e mais mistério. O bom dos poemas de Herberto Helder é que eles demoram, são longos, são duradouros. O poeta não respeita as suas distâncias e cada poema vai até onde pode o peito. Como árvores, existem certos poemas que ficam plantados dentro da gente, poemas que podem ser signos transgressores. Existem poemas que nasceram para vingar.

Hilda Hilst, mal comparando, seria uma irmã de letras, uma prima distante de desconcertos do poeta português. É enorme, na poesia de ambos, o poder de produzir encantos específicos, sem bulas e rótulos, como é próprio das coisas, dos artistas naturais. Certos poetas carregam ímãs. Basta a vida? Não basta o homem e a nossa sede. A poesia de Herberto prolonga-se sem remissões.

A poesia de Herberto cresce entrelaçada de mãe e amor. A poesia de Herberto fala, conta, canta crepúsculos. Trata-se de uma poesia que acalenta e faz crescer, gradativamente, os desejos do corpo, o amplo desejo das águas e das nuvens. Mesmo que caiba, mesmo quando desaba a palavra escombro, a poesia de Herberto é feita com o sangue de existências poderosas, é feita de um lirsmo que se impõe, que se faz presente em cada pausa, em cada estrofe, em cada verso que respira – e faz respirar.

Herberto tem a dicção dos loucos, dos profetas, ele aprendeu a dicção dos homens simples. A sua poesia é sinônimo de renovação. Poesia é sempre labirinto e é diante do delírio (é dentro dele) que as formas, que as sementes, que tudo encontra motivos: “O poema faz-se contra a carne e o tempo”.

Herberto Hélder nasceu no Funchal, na Ilha da Madeira, em 1930. O poeta frequentou a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo trabalhado em Lisboa como jornalista, bibliotecário, tradutor e apresentador de programas de rádio. O escritor tem diversos livros de poesia, como O amor em visita (1958), A colher na boca (1961), Retrato em movimento (1967), A cabeça entre as mãos (1982) e Ofício cantante (2009), entre outros.

OU O POEMA CONTÍNUO

. De Herberto Helder
. Editora A Girafa
. 536 páginas, R$ 61,25

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