Vereda e neblinas

Luisa Geisler, aos 21 anos, mostra com o romance Quiçá que é uma das grandes promessas da literatura brasileira

por 28/09/2013 00:13
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Record/Divulgação (foto: Record/Divulgação)
André di Bernardi Batista Mendes

Quando menos se espera, uma boa surpresa desponta. Do nada, cai nas suas mãos um livro. Foi assim com Quiçá, de Luisa Geisler. A menina, a moça é impetuosa. Aos 19 anos, ganhou o Prêmio Sesc de Literatura de 2010 na categoria conto, pelo seu livro de estreia, Contos de mentira 2. No ano seguinte, repetiu a dose vencendo o prêmio de melhor romance com o ótimo Quiçá. Ela é uma das finalistas do Prêmio Jabuti (na categoria romance), também com Quiçá, ao lado de nomes como Evandro Afonso Ferreira, Daniel Galera, Zuenir Ventura, Ricardo Lísias, Rodrigo de Souza Leão e Marcia Tiburi, entre outros. A cerimônia de entrega do prêmio aos vencedores será em 13 de novembro. Como se não bastasse, em 2012, Luisa foi incluída na antologia Os melhores jovens escritores brasileiros, editada pela Granta. Foi a mais jovem autora selecionada para a coleção.

O jovem Arthur é o protagonista de Quiçá. Este estranho parente do interior encontra, dentro do inusitado, Clarissa, a solitária prima de 11 anos, boa aluna, boa filha, triste figura. O primo passa a ser, com o decorrer das semanas, o único olhar a definir e entender Clarissa, num ambiente de desconfiança dos pais da menina, ausentes, como é usual, do seu dia a dia, distantes de suas pendências, de suas aspirações. As cenas fragmentárias do romance revelam vidas descosidas umas das outras: nas relações a dois, nas relações familiares e nas amizades, tudo soa precário.

Mesmo a ligação que une Arthur e Clarissa não se dá por inteiro, e alguns segredos desconfortáveis assomam como breves fantasmas ao longo do texto. Tudo surge, some e ressurge meio que envolvido num véu de incertezas, numa vereda feita de neblinas Uma reunião de Natal, a que toda a família comparece sem vontade, apenas sublinha o esgarçamento do tecido que uma vez os uniu.

Luisa tem vários trunfos, esta jovem escritora possui, com alguns poucos deslizes, com algumas poucas ressalvas, muitas qualidades. Ela soube, como poucos, montar uma trama inteligente, com boas pitadas de sedução e estilo. Luisa embarca com segurança num turbilhão que, para outros, poderia ser nocivo, fatal. Luisa utiliza, com cuidado e esmero, na sua escrita, a linguagem coloquial, contemporânea, mas sem se entregar a clichês. Luisa pinta com cores fortes situações do cotidiano de uma família, de pessoas de classe média. Luisa, contudo, não perde o fio da meada. Segura de si, ela leva o leitor, com delicadeza, a encarar as quase 250 páginas do livro.

Luisa montou um esquema delicado para a estrutura de sua obra. Ela fala de um ano letivo, no qual Arthur passa na casa dos tios, depois de ter sido internado por tentativa de suicídio; fala de um dia, de um almoço de Natal que reúne toda a família; fala de uma vida, nas pequenas revelações diárias. Tudo, os fatos, este conjunto se entrelaça. Luisa, nisso tudo, aponta para o óbvio de uma verdade sempre parcial. Ela detona qualquer perspectiva de uma vida libertadora. Nada é sublime, mas existem os olhos, os corações de personagens vivos. Luisa, dona de uma ambição literária interessante, costura situações e leva o leitor, envolve o leitor numa rede de idas e vindas, sombras e descobertas. Luisa fala sobre a adolescência, esse processo feito de muito mais perdas do que ganhos.

É sempre interessante de onde podem surgir as mais inusitadas formas de carinho. Arthur e Clarissa, por incrível que pareça, percebem, sabem deste fogo necessário. Só não sabem os pais. A melancolia, os desencontros guardam, escondem uma certa beleza. Certas coisas, e muitos jovens – não são todos – buscam algum tipo de transcendência dentro do tempo que corre. É tão difícil, para tantos, acertar o passo, achar um caminho, num turbilhão de incertezas e afetos renitentes. Alguns jovens vivem, alimentam-se, apenas, de seus ensaios, que podem ser sonhos. O acaso é um baú de surpresas para corações sensíveis, para almas atentas. Não por acaso, a palavra quiçá significa possivelmente. Quiçá significa talvez, porventura.

Lúdico e silêncio

Luisa, com capítulos curtos, escreve sobre vários temas (pena de morte, sexo etc.), cita outros autores e deixa no leitor boas impressões. A literatura também serve para o lúdico, para o silêncio. Palavras também servem para vestir o cotidiano de panos e cores. Luisa sutilmente questiona a estrutura social, a hipocrisia das relações, o moralismo cínico.

Outro ponto positivo do livro: a escritora respeita os personagens. Ela não “inventa” para melhor chegar ao texto, ela sabe que, diante de perspectivas, os inocentes tornam-se carrascos, os vilões transformam-se em feras confiáveis. O protagonista Arthur é dono de uma personalidade forte (ele tem tatuagens, ele tem um belo alargador na orelha, ele fala palavrão, ele é, sim, sexualmente ativo), o rapaz tem uma espécie de ímã estranho que ao mesmo tempo atrai e repele. O rapaz não poupa sua prima, Clarissa, de suas aventuras. Arthur empurra – com leves toques – a menina para um turbilhão que recebe o nome de vida. Só os pais não percebem.

A escritora aceita, acata o contraditório e faz desse caldo, e transforma estes ingredientes numa alquimia que revela o talento de uma artista que, ressalta-se, ainda tem um logo caminho pela frente. Os primeiros passos foram dados, com firmeza. Luisa foge do fácil, encara as palavras como se fossem uma espécie de arma, como se desse conjunto surgisse um revólver carregado. O bom escritor deve, antes de tudo, escolher o seu alvo, as suas vítimas. Luisa poupa o leitor de seu tiro. A escritora nasceu em Canoas, no Rio Grande do Sul, em 1991.

QUIÇÁ


. De Luisa Geisler
. Editora Record, 240 páginas, R$ 42.

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