Professor conta sua experiência com nova e arrebatadora peça do Grupo Galpão

Montagem do último texto de Luigi Pirandello, com direção de Gabriel Villela, tem acertos cênicos, estéticos e históricos que dão atualidade à poesia do dramaturgo italiano

por Berilo Luigi Deiró Nosella 21/09/2013 12:00
Leandro Couri/EM/D.A Press
Encenação de Os gigantes da montanha no Parque Ecológico da Pampulha: encontro sem mediação da arte com o público (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
“Tenho medo!”, diz o personagem Diamante, de Os gigantes da montanha. Foram as últimas palavras escritas por Luigi Pirandello em dezembro de 1936, em Roma, onde viria a falecer dias depois. Com estas palavras, o autor encerrava o terceiro ato de seu mito Os gigantes da montanha, que permaneceria incompleto, com um quarto ato por redigir. Deste, apenas algumas indicações passadas oralmente a seu filho Stefano permaneceram. Porém, tal falta, do meu ponto de vista, não tem significado na história da obra como uma perda, mas se traduz em ganho de riqueza inumerável na abertura de suas leituras. Ganho condizente com o caráter fantasioso e poético da própria obra.

Não vou falar da peça em si, mesmo falando obviamente dela, mas de uma encenação em particular, a montagem de 'Os gigantes da montanha' realizada pelo Grupo Galpão, com direção de Gabriel Villela. Não se pretende aqui uma análise minuciosa da montagem, nem mesmo uma crítica – nem aquela com o sentido de orientar o espectador sobre o que observar no espetáculo, nem aquela com o intuito de dizer a ele, de um ponto de vista mais capaz (como se isso fosse possível), se o que ali se vê em cena é bom, ótimo, regular ou ruim. O que se pretende é um breve comentário, no sentido da experiência – já de antemão explicito, extremamente prazerosa – de assistente por um apaixonado pelo autor e especificamente pela obra.

Pirandello inicia a redação de 'Os gigantes da montanha' em 1928 e, como já dissemos, morreu em 1936 sem finalizá-la. A peça, em sua riqueza abismal, poderia ser sintetizada como um embate entre a beleza sutil e elevada da poesia e da arte e a aspereza forjada na dureza da vida do público. Tal embate significaria a morte da arte, pois sem seu público ela não pode existir. Cotrone, o mago, um artista que, vivenciando tal incompatibilidade, isola-se numa vila com alguns companheiros, com o intuito de ali, longe dos homens e longe do público, manter viva a arte por si própria. Ilse, atriz, personagem criada por Pirandello para Marta Abba, primeira atriz de sua então extinta Companhia e sua grande paixão, acreditando que a poesia só pode ou só deve existir entre os homens para o público, mantém firme o desejo de encenar A fábula do filho trocado aos homens.

A fábula do filho trocado é, naquele lugar que chamamos de realidade, uma peça do próprio Pirandello, mas no mito foi escrita a Ilse por um poeta apaixonado que, não sendo correspondido, matou-se. O quarto ato não redigido daria conta do momento da encenação da Fábula por Ilse, causando tanto desagrado ao público que este, tomado pelo descontentamento e fúria, avançaria sobre a atriz, que ali, frágil (pois assim é a poesia), esforçava-se por dar corpo às palavras do poeta, estraçalhando-a junto à poesia.

Bom, aqui começa meu pequeno comentário, um pouco confuso talvez, pois enredado numa meada relutante em encontrar seu fio. O que me tocou mais profundamente no espetáculo do Grupo Galpão, em feliz reencontro com Gabriel Villela, como não poderia deixar de ser, foi seu forte apelo popular. Numa simplicidade, que nunca é pobre, o espetáculo traz à terra a elevada (no sentido do que se eleva, flutua) poesia de Pirandello. Os efeitos singelos, realizados ali, diante do público, no palco montado à praça, contando aquela história fantasiosa, recheada por músicas populares italianas conhecidas entre nós, seja pela difusão pop recente, seja por reminiscências imigrantes de nossos ancestrais, transporta o público para um lugar onde o prazer de cada cena sobrepõe-se a uma possível “integridade” do texto.

Não vemos ali a experiência da concentração absoluta do público em reverência à poesia, ao enredo. E assim o espetáculo consegue algo maravilhoso, que o público vivencie e saboreie o espetáculo entendendo a essência, em matéria e não em abstração, da peça pirandelliana: o prazer elevado da poesia. Um gesto cômico, levando o público ao riso; a imagem fantástica de um anjo, extasiando a todos; uma música que anima, aquecendo em meio ao frio da praça (assisti ao espetáculo em Ouro Preto e São João del-Rei em seus festivais de inverno); os tules brancos das sombrinhas do cenário, remetendo-nos, em outra ambiência, à experiência de seu Romeu e Julieta, a bailar ao vento; o número da cabeça de Spizzi rolando pela cortina em seu suicídio sonhado; a Madalena, em sua sensualidade bonachona, a atirar filhos ao mundo. Gabriel e Galpão não caem naquele que seria o maior equívoco na encenação da peça: a reverência forçada do público, num ato de soberba, ao texto poético de Pirandello.

Ao mesmo tempo, não se pode dizer da montagem que seja infiel ao texto, não só porque tal acusação historicamente já se mostrou insustentável, mas porque, como já disse, realizá-la em tom popular significa realizar o intuito que levou Ilse à ruína, portanto, o desejo do próprio autor. No embate entre poesia elevada e público rasteiro, nós, artistas e afins, tendemos a tomar partido da poesia, nos esquecendo de um detalhe presente nas anotações de Stefano sobre as últimas ideias do pai para finalizar a obra. Elas se referiam tanto à postura do mago Cotrone, o grande defensor da poesia, que a certa altura, diante do corpo mutilado de Ilse, compreenderia que não havia culpado, pois, se os homens não se alçam à elevação da poesia, esta não desce à Terra para encontrar os homens; quanto à postura dos atores da companhia da condessa Ilse, principalmente o conde, seu marido, claramente “mais leve, como que liberado de um pesadelo”.

Arte e público

Um último ponto que me parece pontuar o caráter popular e profundo da montagem em relação ao texto pirandelliano está exatamente na junção de duas opções: a música escolhida para encenação do quarto ato não redigido da peça, e uma língua de fantasia para encená-lo. Não tendo sido escrito pelo autor, a montagem propõe um último ato num idioma fantasioso. Tal solução, quando somada à escolha da canção popular italiana Bella ciao, me parece de uma felicidade imensurável. Pela beleza e riqueza de sentidos e leituras, pelas ampliações e aprofundamentos já ditos.

Bella ciao é uma canção popular de resistência. Sua origem, provavelmente, remonta ao final do século 19, como uma canção de trabalho entoada por trabalhadoras rurais temporárias das plantações de arroz ao longo do Rio Pó, no Norte da Itália. Durante a Primeira Guerra Mundial, tornou-se uma canção de protesto contra a guerra e, por fim, em sua versão mais conhecida até hoje, durante a Segunda Guerra, tornou-se uma canção antifascista. Pirandello era fascista, ao menos filiado ao Partido Fascista. Mas aí é que a coisa fica interessante na opção da montagem do Galpão. Pirandello demorou oito anos para finalizar Os gigantes da montanha sem nunca fazê-lo, exatamente de 1928 a 1936, nos anos que, sabe-se, sua relação com o partido e Mussolini encontrou-se gradativamente abalada, fundamentalmente, pelo caráter liberal de suas obras.

Juntando tudo, há de ser possível acreditar que o ato de não finalizar a obra signifique um ato de não resolver a equação por ela proposta: arte versus público. Resolver tal equação no momento histórico vivido pela Itália, dominada pelo embrutecedor fascismo que teria expulsado do espírito italiano todo e qualquer sonho e poesia, seria falso, seria impossível, seria perigoso. Preservar sua obra era não resolver o impasse. Talvez pudéssemos pensar que resolver tal impasse seja problemático em qualquer momento histórico, pois resolvê-lo é não refletir sobre ele, sobre os limites da nossa humanidade que a simples existência do impasse nos imputa.

Tal compreensão enche de sentidos as últimas palavras escritas pelo poeta na peça, palavras enfatizadas convenientemente pela montagem do grupo mineiro: “Tenho medo!”. Seguindo por aí, o Galpão, ao encenar o último ato não concluído numa língua de fantasia e ao som de Bella ciao, canção de resistência com várias letras ao longo da história, uma canção que independentemente das palavras evoca o espírito de luta, deu voz ao silêncio historicamente significativo do poeta, entoando em nosso tempo o impossível no passado do autor e premente em nosso presente de artistas: a força e importância da arte em meio ao povo, de onde nunca deveria ter saído.

* Berilo Luigi Deiró Nosella é professor da Universidade Federal de Ouro Preto
e estudioso da obra de Pirandello e do teatro italiano moderno.

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