Violentos são os outros

Impulsionados pela força das ruas, é possível detectar três momentos da ação do Estado em relação aos movimentos que animam a sociedade: o espanto, a busca de cooptação e o rearranjo conservador

por João Paulo 14/09/2013 00:13
João Miranda/Esp. EM/D.A Press
Manifestante com bandeira anarquista e força policial durante o Dia da Independência, no Centro de Belo Horizonte (foto: João Miranda/Esp. EM/D.A Press)

Ninguém é a favor da violência. No entanto, há momentos em que é preciso distinguir as formas de exercício da violência. O Brasil é um país violento. E não é porque as pessoas estão nas ruas do Centro das grandes cidades, mas exatamente porque nunca estiveram nelas, a não ser como figurantes. Nossa violência é, para usar uma palavra da moda, estruturante.

O nosso senso comum, capitaneado pela classe média, gosta de criar genealogias espúrias e autocomiserativas. Assim, a violência urbana teria origem na migração para as cidades de populações sem preparo para a vida social. Sem lugar nas áreas valorizadas da cidade, ergueram nas periferias não apenas sua possibilidade de vida, mas a cultura da marginalidade e da violência urbana que amedronta. Vem daí um dos mitos mais cruéis da sociologia de bolso conservadora: a criminalidade é filha da pobreza.

Na busca dessa falsa pesquisa de origem sempre coube bem a ideologia da paz social, que teria permeado nossa formação como país. Uma nação que se fez sempre de transições alcochoadas para evitar que a elite fosse punida, sem prejuízo para a ordem, com alergia de povo e à custa do silenciamento histórico da vigorosa trajetória de lutas que se espalha ao longo dos séculos. História dos vencedores, silêncio dos vencidos.

Outra hedionda manifestação de nossa violência constitutiva é a injusta distribuição de renda. A absurda miséria na vida da maioria da população, em contrapartida ao núcleo duro da riqueza concentrada na mão de poucos, tem como corolário a dança ridícula dos números da empresas de Eike Batista. Parece que a colocação do empresário nas listas de bilionários é uma questão nacional, e não uma disputa infantil e freudiana de retenção libidinal.

A incipiente distribuição de renda que se observa nos últimos 10 anos, em razão de nossa cultura de injustiças, gerou no primeiro momento mais rancor que comemoração. Algumas pessoas se sentiram agredidas por partilharem do patamar de consumo com extratos menos privilegiados e, sobretudo, em dividir o espaço público. A situação de constrangimento nos aeroportos chegou a ser ridícula.

Na lógica do condomínio e da área VIP, o importante não é ter, mas negar que todos tenham. A posse não é um sentimento pessoal, mas trasicional: é fundamental que o outro não tenha. O que alimenta o consumidor não é o gozo, mas a inveja. O consumidor conspícuo nunca é autônomo. Ele precisa do outro para ter prazer.

De tal forma a violência está corporificada na sociedade brasileira que mal damos conta dela em todos os momentos e ações. É violência, por exemplo, preservar o mandato de um deputado condenado pela Justiça em última instância. Atenta-se, de uma só vez, contra os poderes republicanos – contra o Judiciário, por escárnio com a lei e seus agentes; contra o Legislativo, que perde legitimidade por abrigar entre seus pares um criminoso com as mesmas prerrogativas – e contra a soberania popular, que não se sente representada.

Como Marilena Chauí explica no texto “O homem cordial, um mito destruído à força”, em termos filosóficos há violência quando o outro é reduzido à condição de objeto. Ser violento é negar a realização do homem como sujeito da história. Por isso, quando se fala em cidadania, mais que respeito às leis o que está em jogo é a expansão de direitos. As leis, em si mesmas, não são garantia de ampliação da cidadania, elas espelham um jogo de forças do momento, que pode e deve ser contraposto à dinâmica da história e à capacidade de mobilização da forças sociais. O Brasil é um país de leis, não é ainda uma nação de direitos.

Polícia e política
A violência, por isso, está presente em diferentes momentos de nossa realidade: na falta de serviços públicos de qualidade; no combate aos programas de saúde para áreas carentes em nome de privilégios corporativos; na educação baseada nos interesses de mercado; nas diferentes formas de se pensar a segurança (entre a proteção do patrimônio nas áreas nobres e a desconfiança permanente do cidadão das regiões pobres); no autoritarismo político que vem dispensando todas as formas de participação direta; na criminalização dos movimentos sociais.

Para todos esses problemas, a solução é política. No entanto, mais um reforço de nossa ideologia autoritária, violência é tida quase sempre como um escape não planejado das estratégias de funcionamento social. Há violência, defendem os cultores da ordem restritiva de direitos, quando as pessoas não conhecem seu lugar. O que se realiza como crítica, oposição, confronto de projetos, alargamento de possibilidades, contradição – tudo isso é visto como momento de disfuncionalidade e, por isso, objeto da ação policial. Num país que respira violência como o ar que lhe dá vida, a polícia substitui a política.

E, com todo esse entulho, ainda há quem se espante com o que aconteceu no Brasil de uns meses para cá. Para muita gente, é até aceitável que as pessoas ocupem as ruas, desde que sigam o jogo educado do protesto que é mais estético que político. Passeatas limpas, com crianças brincando e faixas catitas. Um arremedo de protesto que se traduz por mensagens genéricas e pré-políticas, “contra tudo que está aí”. Na vida real, a história é outra.

Impulsionados pela força das ruas, é possível detectar três momentos da ação do Estado em relação aos movimentos. No primeiro, foi o espanto. Incapaz de ler a dimensão política – e até a novidade tecnológica do movimento organizado à margem dos instrumentos convencionais de agitação social –, a força repressiva foi acionada com seu arsenal típico de brutalidade e criminalização do social.

No segundo momento, em razão do crescimento da onda de protestos e da participação de insatisfeitos de todos os matizes, houve um recuo estratégico da repressão e a busca de negociação. Os manifestantes foram convidados a apresentar propostas, ocuparam a mídia, foram objeto de tentativas frustradas de cooptação. A onda alcançou outras dimensões da vida social e bandeiras históricas dos movimentos sociais, como a luta contra a discriminação sexual.

O terceiro e mais recente momento parece conviver com outra lógica. A mobilização é latente, como uma chama-piloto, e pode pegar fogo a qualquer momento, desde que a faísca seja provocada. Ao mesmo tempo, surgiu como escape para as forças repressivas a figura dos mascarados, como infiltrados minoritários, que merecem o tratamento de criminosos. Logo as leis restritivas foram criadas e o julgamento dos meios de comunicação perdeu a falsa condescendência. Como um mantra, todos se voltaram de forma orquestrada para impedir a participação de determinados grupos e o pau voltou a comer solto, com rearranjo dos setores mais conservadores.

Disjunções e insurgências

Esse vaivém faz parte do jogo. O que parece ser universal em todos os momentos – e deve atingir em cheio a corrida eleitoral do ano que vem – é a constatação de que há uma demanda de cidadania a ser tornada realidade. Um livro lançado recentemente, Cidadania insurgente – Disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, do brasilianista James Holston (Companhia das Letras), mostra que a história não é nova. A dívida e a insatisfação são antigas, as reações também.

O autor, como sintetiza o título de seu estudo, mostra, a partir de exemplos da luta por moradia em São Paulo, que a democracia brasileira – efetiva em termos de política eleitoral e de outros mecanismos formais – não se traduz na prática da cidadania. Somos modernos em política oficial e jurássicos na sociedade real. O que Holston chama de “cidadania insurgente” é exatamente a luta contra a violência da sociedade brasileira no seu dia a dia. Há injustiça social, má distribuição de renda, privilégios, impunidade, criminalização dos movimentos sociais, pouca qualidade de vida nas cidades (o transporte foi apenas a ponta do iceberg). Tudo isso é outro nome da violência.

Os protestos, que não vão acabar tão cedo, dizem respeito a isto: a cidadania não completou seu ciclo na sociedade brasileira, ela não está acabada. O foco das mobilizações é o que o sociólogo chama de disjunções. Mas é preciso acrescentar um dado. Ainda que tenha alto grau de mobilização, sobretudo pela utilização de ferramentas da rede, o movimento das ruas precisa se chocar com as formas de representação política. Não basta criticar o poder, é preciso conquistá-lo. A nova política, certamente, vai ser herdeira deste curto-circuito: demandas imediatas que buscam alguma forma de efetividade social. Os movimentos precisam aprender com os partidos (até para evitar seus erros), os partidos precisam seguir as lições das ruas (até mesmo para ampliar seus acertos).

Por isso é sempre bom ler o movimento das ruas pelas vias certas. Eles não são violentos. Violenta é a sociedade brasileira. Na vida social, como na existência individual, no entanto, quase sempre o inferno e os violentos são os outros. Anjos pacíficos, recusamos o espelho como quem afirma a identidade vicária construída em torno de silêncios. Como Jean-Paul Sartre, para ficar na mesma inspiração, disse certa vez: o burguês aceita que lhe retirem tudo, até a honra, menos a condição de burguês.


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