Exposição mostra como a mulher ajudou a arte a se libertar da obrigação de mensagens significativas

'Elles, mulheres artistas na coleção do centro Pompidou' está em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, em Belo Horizonte

07/09/2013 00:13
Centre Pompidou/Divulgação
Fotos de Nan Goldin exibem coisas comuns, mas que parecem participar de uma atmosfera de transcedência (foto: Centre Pompidou/Divulgação)
Por Douglas Garcia - professor do Departamento de Filosofia e do Mestrado em Estética e Filosofia da Arte da Universidade Federal de Ouro Preto

A exposição Elles: mulheres artistas na coleção do Centro Pompidou, atualmente em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CBBB) de Belo Horizonte, é uma ótima oportunidade para a retomada de questões sobre o estatuto contemporâneo das artes. E também um impulso para reconhecer o impacto da experiência das mulheres na renovação da filosofia contemporânea.

As artes no século 20 se viram liberadas da obrigação de parecerem “belas”, no sentido mais restrito do termo, do agradável ao olhar. O mesmo movimento das artes também as liberou da obrigação de parecerem monumentais, como se devessem ser a inscrição sensível de ideais “espirituais”, vinculados, muitas vezes, às experiências dos homens com o poder social, a dominação da natureza e negação da real dependência humana do corpo.

Nesse sentido, o registro em vídeo da performer Marina Abramovic, que abre a exposição no terceiro andar do CCBB, não poderia ser mais emblemático. Nele, vemos a bela artista sérvia pentear seus cabelos enquanto repete, em inglês, a frase “a arte deve ser bela, a artista deve ser bela”. Ela parece olhar para um espelho que nós, espectadores, não vemos. Seguimos seus gestos de alisar impetuosamente os cabelos com uma escova. Ela dispõe seus cabelos escuros no alto da cabeça, como se quisesse fazer um penteado, mas parece desistir da operação, e começa novamente a alisar com força os cabelos, enquanto ainda repete a frase. Não podemos decidir se seu gesto infindável é de revolta contra o conteúdo da norma que sua voz repete, de sacrifício ou de desespero. Ao deixar a sala, ainda ouvimos a voz de Marina Abramovic.

Todo o percurso da exposição leva a considerar o quanto a experiência das mulheres foi e continua sendo significativa para liberar as artes da obrigação de parecerem “significativas”, de servirem de veículo para a transmissão de “mensagens” que viriam prontas “do alto”, seja esse “alto” a transcendência do absoluto ou a afirmação abstrata de uma dignidade humana desvinculada de todo contato com os elementos da natureza.

A série de fotos de Nan Goldin, exibidas em slide show, é exemplar, nesse sentido. Na sala completamente escura, com o acompanhamento da música de Björk, as imagens de cenas domésticas de casais parecem emanar uma estranha transcendência. Seu despojamento de todo glamour, seu caráter prosaico tem o efeito de indicar que há no “baixo” dos corpos humanos um elemento de dignidade irredutível a qualquer sentido imposto “de cima”. Elas parecem sugerir um estranho sentimento de pudor por meio da exposição do mais íntimo. Ao sair da sala, não podemos decidir do que é feito o apelo humano dessas fotos.

A poeta Ana Cristina Cesar uma vez escreveu que “as mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios”. Ela poderia também ter escrito que elas são as primeiras a desistir de erguer monumentos ao poder, como as estátuas equestres das praças. A experiência das mulheres tem reconfigurado os diversos campos da filosofia. O cerne desse movimento é a indicação de que os conceitos filosóficos tradicionais, notadamente no campo da ética e da filosofia política, possuem um caráter de gênero, que é ocultado. Longe de serem necessários, universais e desvinculados de toda experiência, são, ao contrário, contingentes, particulares e transcrições generalizantes de práticas específicas. Os trabalhos de Virginia Held e Carol Gilligan são exemplares, nesse sentido.

Ideia de liberdade As artes e a filosofia são campos da cultura orientados pela ideia de liberdade. Isso quer dizer que as práticas artísticas e filosóficas são práticas de liberdade. O trabalho das artistas expostas em Elles revela muito do modo de operação dessas práticas. Trata-se, a cada vez, de escavar as estruturas mais profundas que dão sentido comum, partilhável, a aspectos da nossa humana experiência do corpo, da linguagem e da sociabilidade. As artistas o fazem ao criar experiências de deslocamento da identidade pessoal e do sistema de coordenadas normativas dos espectadores. Essas coordenadas normativas operam a partir do nível da cultura, da linguagem e da percepção. Deslocar essas coordenadas é questionar nossa adesão às estruturas de sentido que mantém o nosso funcionamento “normal” nos níveis social e psíquico.

As práticas artísticas das mulheres reunidas em Elles trazem ao primeiro plano a primazia das relações e das práticas. Elas desafiam o gesto tradicionalmente associado aos homens de definir o conceito de uma coisa a partir da reunião de suas propriedades salientes, de modo isolado e estático. Elas estabelecem um campo de relações que parte da experiência comum do mundo, e mostram como nossa experiência de nós mesmos e dos outros é construída a partir de linguagens e de práticas que se impõem como normativas, mas que são abertas à reformulação.

As mulheres artistas/filósofas são portadoras da esperança da cultura. Esperança de invenção de novas formas de vida em comum, de relações mais livres com o corpo e de um uso mais poético da linguagem.

ELLES: MULHERES ARTISTAS NA COLEÇÃO DO CENTRO POMPIDOU
Obras de Frida Kahlo, Nan Goldin, Suzanne Valadon, Marina Abramovic, Rosângela Rennó, Lygia Clark e Rivane Neuenschwander, entre outras. Centro Cultural Banco do Brasil, Praça da Liberdade. Quarta a segunda-feira, das 9h às 21h. Até 21 de outubro.

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