Ricardo Lísias se reinventa como personagem de seu novo romance

'Divórcio' é uma narrativa que trata a realidade como matéria ficcional. Escritor recusa igrejinhas e não quer saber de rótulos

por Carlos Herculano Lopes 17/08/2013 08:00
Fernanda Fiamoncini/Divulgação
Ricardo Lísias olha com desconfiança autores que escrevem para agradar os críticos e a mídia e deixam a literatura em segundo plano (foto: Fernanda Fiamoncini/Divulgação)


Da nova safra de escritores paulistas que de um tempo para cá vêm se firmando no cenário literário brasileiro, Ricardo Lísias dá mostras de vitalidade e lança outro romance, 'Divórcio', que segundo ele teve como ponto de partida um momento traumático e pessoal da sua vida. Mas afirma que não passou disso, pois, na sequência, durante o processo da escrita, procurou recriar o trauma amoroso de forma ficcional.

Questionado se a história teria alguns rasgos de autoficção, Lísias afirma não ter elementos teóricos para discutir o termo que vem ganhando cada vez mais terreno na análise da nova safra literária, mas afirma que o novo romance acompanha seu livro anterior. Em 'O céu dos suicidas' ele discute protocolos da literatura para defendê-la como gênero da arte que não pode ser colado de imediato à realidade. “Para deixar óbvia essa diferença, em 'Divórcio' utilizei meu próprio nome como o do narrador”, diz.

Seja como for, tudo começou quando, quatro meses depois do casamento, Ricardo Lísias, o narrador, encontra, por acaso, o diário de sua mulher, no qual ela, sem meias palavras, simplesmente acaba com ele, de forma inusitada para um início de casamento: “O Ricardo é patético, qualquer criança teria vergonha de ter um pai desse. Casei com um homem que não viveu. O Ricardo ficou trancado dentro de um quarto lendo a vida toda”.

Escritor que ainda não conseguiu decolar, ele se desespera depois de ler o diário, no qual é exposto de maneira tão impiedosa. Em seguida, sem alternativa, separa-se dela, sai andando a esmo pelas ruas de São Paulo e, pior ainda, começa a perder a pele, transformando-se em outra pessoa.

O fato de o personagem perder a pele, numa metamorfose quase surrealista, talvez tenha sido a grande sacada encontrada pelo escritor para dar o tom ficcional à história, na qual o narrador, para não enlouquecer, logo depois de ter encontrado os escritos da mulher, procura se ocupar com uma série de atividades e lembranças, além de continuar a escrever, na esperança de se tornar reconhecido.

E é justamente o fato de não parar de escrever que faz com que o personagem, aos poucos, vá se recompondo. Consegue criar outra pele e também outro mundo, no qual passa a se sentir inserido e a conviver melhor com os problemas do passado, que já não o atormentam tanto.

O fluxo produzido pela narrativa, que o tempo todo parece se voltar para a experiência pessoal do narrador, tem sua carga autobiográfica acentuada ainda pela presença de imagens – fotos antigas – que permeiam o texto como num velho álbum de retratos. E o autor não foge também de passagens fortes, confessionais, com alta voltagem erótica. No entanto, é a literatura que tem sempre a última palavra.

Nascido em 1975, em São Paulo, Ricardo Lísias estreou na literatura com o romance Cobertor de estrelas. Em seguida vieram Duas praças, O livro dos mandarins e O céu dos suicidas, vencedor do prêmio de melhor romance da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). É autor também de Anna O. e outras novelas.

O sonho de viver só de literatura existe, mas ainda terá de esperar um pouco. “Não tenho retorno financeiro suficiente para viver apenas de redação ficcional”, reconhece o professor de literatura e língua portuguesa, sem traumas com a tarefa de dar aulas.

Outra geração

Selecionado no ano passado pela revista Granta como um dos 20 melhores jovens escritores brasileiros, Lísias tem o pé atrás quando o papo é “geração”, referindo-se a autores com menos de 40 anos que andam fazendo ficção no Brasil. De acordo com ele, não se trata de grupo sem contradições. No meio dessa turma existem diversas tendências, com caminhos variados. Na verdade, ele se espanta ao ver grupos de escritores tão jovens redigindo textos de fácil digestão crítica, comportando-se tão bem em eventos literários e tendo uma relação boa e hábil com a mídia. “Este pessoal faz uma literatura bem comportada demais, que não me interessa”, diz o Lísias.

Por outro lado, afirma que existem autores que têm se afastado do mainstream e conseguido algo que lhe parece interessante, sem amarras ou compromissos. Entre estes, cita Alexandre dal Farra, com o livro Manual da destruição, e Roberto Menezes, com Palavras que devoram lágrimas. Quanto a ele, depois de 'Divórcio', já começa a fazer exercícios para escrever um novo texto, no qual pretende seguir na linha dos seus últimos livros e discutir a questão da autonomia da obra de arte diante da realidade.

três perguntas para...

Ricardo Lísias
escritor

Aos 38 anos e com vários livros publicados, que momentos destaca em sua trajetória?

Meu primeiro livro, Cobertor de estrelas, foi publicado quando eu tinha 25 anos. Acabei começando cedo e fui aos poucos compondo essa obra. Eu era estudante de letras e comecei a escrever ficção. Aos poucos, a criação foi tomando conta da minha relação com a literatura, junto com a leitura. Hoje, é minha prática principal: a redação de textos ficcionais.

Escrever é também “perder a pele” para se desnudar e construir um novo mundo?

Acho que escrever é criar outra pele e também outro mundo. Então, creio que você tem razão. Trata-se de um tipo de abandono de si mesmo para buscar o outro, outros mundos e novas possibilidades. Para mim significa tudo isso e tudo isso para mim significa um ato político.

Como é seu processo criativo?

Escrevo todos os dias pela manhã, sem exceção, há mais ou menos 10 anos. Faço inúmeras redações e revisões e vou, aos poucos, chegando ao texto final. Gosto muito de fazer pesquisas também. Tento trabalhar intensamente na ficção.

Divórcio

De Ricardo Lísias
Editora Alfaguara, 238 paginas, R$ 39,90

Trecho

“Quando terminei, depois de quatro meses de casamento, respirei fundo. Por algum motivo, apurei os ouvidos. O apartamento estava completamente silencioso. Levantei e forcei as pernas no chão, como faço em momentos de crise. Não senti tontura ou falta de ar.

Agora, escrevendo, acho estranho. Fiquei muito calmo. Fui até a sala. Sentei no sofá. Tudo continuava silencioso. Que tipo de pessoa deixa algo assim no caminho do homem com quem se casou quatro meses antes?

Não foi o que pensei. Percebi que minha ex-mulher tinha me torturado por todo esse tempo. Voltei ao quarto e abri de novo o diário. Reli um parágrafo. Sou capaz de descrever exatamente a sensação: preciso salvar a minha vida. Todas as vezes em que me senti ameaçado – nenhuma com essa intensidade – fiquei muito calmo.”

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