Quem foi afinal Manuel de Paiva? Sua personalidade singular emerge agora, por inteiro, no livro que reúne a correspondência trocada, durante três décadas, entre Manuel José de Paiva Júnior e Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898 – 1969), primeiro diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Paiva teve desempenho fundamental na implantação da política de patrimônio em Ouro Preto e aparece como referência singular na história do serviço federal dirigido por Rodrigo. A publicação traz o selo do Instituto Cultural Amílcar Martins (Icam) e integra a Coleção Memória de Minas.
Monumento Em 1931, o prefeito João Batista Ferreira Veloso criara legislação pioneira em defesa do “facies colonial” da cidade, elevada à condição de monumento nacional por decreto do presidente Getúlio Vargas, em 1933. No Congresso Nacional, debate iniciado nos anos 1920 sobre patrimônio histórico alcançou a Constituinte de 1934 e inseriu a cultura nos textos constitucionais que se seguiram.
Havia, por consequência, todo um clima favorável à sistematização de uma plataforma a respeito da proteção e da conservação de Ouro Preto, tombada pelo Sphan, em 1938, entre as primeiras inscrições então efetivadas. Rodrigo Melo Franco de Andrade compreendia o significado estratégico de Ouro Preto como síntese e símbolo do patrimônio brasileiro, consciente de que o êxito do trabalho ali promovido por sua repartição seria indutor do sucesso maior, envolvendo as demais cidades tombadas e os acervos a serem preservados de norte a sul do país.
Graciema Melo Franco de Andrade contou-me que, quando Manuel de Paiva conheceu seu marido, teria exclamado: “O senhor é o homem que pedi a Deus fosse enviado a Ouro Preto!”. Esperava ele como a um messias, alguém que viabilizasse a defesa do patrimônio que sabia e sentia ameaçado. Por pouco, não desaparecera todo o arquivo documental da Ordem Terceira Franciscana, porque, graças à providencial intervenção de Manuel de Paiva, a papelada salvou-se de ser queimada em dia de faxina no consistório da Igreja de São Francisco de Assis. O zelo de Manuel de Paiva impediu que se destruíssem os documentos referentes aos serviços prestados por Antônio Francisco Lisboa aos franciscanos terceiros, quer dizer, a prova efetiva da presença do Aleijadinho na construção de um dos marcos maiores da arte e da arquitetura do Brasil.
Esse arquivo é o tema da primeira carta de Rodrigo a Paiva, em 4 agosto de 1938, respondida já no dia 10, dando início ao diálogo epistolar que vai perdurar até 1969. Em 13 de maio de 1969, Paiva recebeu a última carta de Rodrigo, datada do dia 5, e anotou no envelope: “J. M. J. Recebi hoje, 13 de maio de 1969, pelas dez e meia, o remet. já faleceo”. Às vésperas de grave operação, a que não resistiria, Rodrigo se despediu do amigo: “O zelo e o desvelo com que o senhor, por longos anos, protegeu o monumento e todos os valores a ele pertencentes nunca lhe será agradecido bastante. De minha parte, sempre o considerarei um dos maiores beneméritos da Igreja e da Ordem de São Francisco de Assis de Ouro Preto”.
Reconhecendo a dedicação e a integridade do homem que cuidava da conservação da Matriz de Antônio Dias e das igrejas de São Francisco de Assis e de Nossa Senhora das Mercês e Perdões (Mercês de Baixo), Rodrigo chamou-o para atuar no Iphan e nele teve um colaborador extraordinário. Paiva se responsabilizou por copiar à mão, em tempo de precária reprografia, documentos de interesse do instituto por ele minuciosamente pesquisados nas paróquias de Antônio Dias e do Pilar. E o fazia com sua letra esplêndida, à maneira dos melhores calígrafos do século 18. Parecem documentos setecentistas as cartas e cópias que remetia sistematicamente ao diretor da instituição, no Rio de Janeiro.
Aleijadinho Em julho de 1943, Rodrigo enviou a Paiva recorte do artigo de sua autoria em 'A Manhã', jornal carioca, no qual comentou “a grande contribuição das pesquisas de Manuel de Paiva para a história da arte no Brasil”. Referiu-se, em especial, à descoberta da atividade do Aleijadinho na Igreja de São José, em Ouro Preto, resultado dessa investigação nos arquivos da cidade. O trabalho durante anos seguidos levou Paiva a achados admiráveis. Ele encontrou recibos e contratos que provam a participação de grandes mestres em diversas obras realizadas em Ouro Preto ao longo do Ciclo do Ouro, começando pelo Aleijadinho. Em forte expectativa, Paiva investigava e Rodrigo arrolava as descobertas, o que permitiu ao diretor do Iphan escrever notáveis ensaios sobre a arte colonial mineira. O dicionário dos artistas, artífices e artesãos do período colonial em Minas nasceu da tarefa monumental de Paiva.
Problemas e desafios da política de proteção do patrimônio, desentendimentos e incompreensões, as descobertas da pesquisa documental, entre variados acidentes de percurso, como doenças, perdas, angústias e aflições, percorrem as cartas. Paiva tem linguagem ainda cadenciada pelo estilo oitocentista, típica dos antigos escribas oficiais, e Rodrigo é comedido e parcimonioso, como impoluto dirigente de órgão público. Mas ambos não escondem a paixão pelo patrimônio cultural e o amor a Ouro Preto.
É um privilégio para a história da proteção patrimonial no Brasil o acesso a essa correspondência, publicada graças ao trabalho de organização levado a efeito pelo diretor do Icam, Amílcar Martins Filho, membro da Academia Mineira de Letras (AML), e Cleber Araújo Cabral. Clara Alvim, filha de Rodrigo, e Carlos Magno de Souza Paiva, bisneto de Manuel José, enriquecem a edição com depoimentos expressivos. Clara e Magno também se dedicam a tarefas cruciais no campo do patrimônio.
Trata-se de livro tão benfeito que um esclarecimento sugere registro. A foto de Manuel de Paiva recebendo uma condecoração não refere à mencionada comenda do governo do estado, mas à Medalha do Aleijadinho, que no flagrante lhe é entregue pelo prefeito Genival Alves Ramalho, tendo ao lado o secretário municipal de Turismo, José Geraldo Pereira, e o assessor Carlos Gabriel de Andrade.
Angelo Oswaldo de Araújo Santos é presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram)