Livro revela a correspondência entre Rodrigo Melo Franco de Andrade e Manuel de Paiva

A dupla comprovou a participação de Aleijadinho em obras-primas do barroco brasileiro

por Angelo Oswaldo 10/08/2013 06:00
Juarez Rodrigues/EM/D.A Press
Detalhe de ornamento da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto (foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)
Tarquínio José Barbosa de Oliveira, historiador paulista que escolheu Ouro Preto para encerrar seus dias vivendo intensamente o cenário autêntico da Conjuração Mineira de 1789 – andava pelas ladeiras prazerosamente evocando um ou outro episódio da trama –, dizia que sem Manuel de Paiva a história não existiria. Queria significar a importância do trabalho do velho ouro-pretano, nascido em 1889 e falecido em 1976, em favor da salvaguarda e do conhecimento dos acervos documentais e do patrimônio artístico e arquitetônico da antiga Vila Rica.


Quem foi afinal Manuel de Paiva? Sua personalidade singular emerge agora, por inteiro, no livro que reúne a correspondência trocada, durante três décadas, entre Manuel José de Paiva Júnior e Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898 – 1969), primeiro diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Paiva teve desempenho fundamental na implantação da política de patrimônio em Ouro Preto e aparece como referência singular na história do serviço federal dirigido por Rodrigo. A publicação traz o selo do Instituto Cultural Amílcar Martins (Icam) e integra a Coleção Memória de Minas.

Quando se inaugurou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), o atual Iphan, em 1937, Rodrigo Melo Franco de Andrade logo dedicou especial atenção a Ouro Preto. A velha capital do Aleijadinho e dos Inconfidentes vinha merecendo, desde a década anterior, a preocupação diligente dos governos da União e do estado, bem como dos meios intelectuais do país. Em 1924, um grupo de modernistas de São Paulo havia lançado apelo em defesa de Ouro Preto. Os presidentes de Minas Melo Viana (1924 – 1926), Antônio Carlos Ribeiro de Andrada (1926 – 1930) e Olegário Maciel (1930 – 1933) determinaram a realização de obras de restauro em igrejas em risco, enquanto a Inspetoria de Monumentos, ligada ao diretor do Museu Histórico Nacional, Gustavo Barroso, empreendera diversas restaurações, entre 1931 e 1935, sob a chefia do engenheiro Epaminondas de Macedo.

Monumento  Em 1931, o prefeito João Batista Ferreira Veloso criara legislação pioneira em defesa do “facies colonial” da cidade, elevada à condição de monumento nacional por decreto do presidente Getúlio Vargas, em 1933. No Congresso Nacional, debate iniciado nos anos 1920 sobre patrimônio histórico alcançou a Constituinte de 1934 e inseriu a cultura nos textos constitucionais que se seguiram.

Havia, por consequência, todo um clima favorável à sistematização de uma plataforma a respeito da proteção e da conservação de Ouro Preto, tombada pelo Sphan, em 1938, entre as primeiras inscrições então efetivadas. Rodrigo Melo Franco de Andrade compreendia o significado estratégico de Ouro Preto como síntese e símbolo do patrimônio brasileiro, consciente de que o êxito do trabalho ali promovido por sua repartição seria indutor do sucesso maior, envolvendo as demais cidades tombadas e os acervos a serem preservados de norte a sul do país.

Graciema Melo Franco de Andrade contou-me que, quando Manuel de Paiva conheceu seu marido, teria exclamado: “O senhor é o homem que pedi a Deus fosse enviado a Ouro Preto!”. Esperava ele como a um messias, alguém que viabilizasse a defesa do patrimônio que sabia e sentia ameaçado. Por pouco, não desaparecera todo o arquivo documental da Ordem Terceira Franciscana, porque, graças à providencial intervenção de Manuel de Paiva, a papelada salvou-se de ser queimada em dia de faxina no consistório da Igreja de São Francisco de Assis. O zelo de Manuel de Paiva impediu que se destruíssem os documentos referentes aos serviços prestados por Antônio Francisco Lisboa aos franciscanos terceiros, quer dizer, a prova efetiva da presença do Aleijadinho na construção de um dos marcos maiores da arte e da arquitetura do Brasil.

Esse arquivo é o tema da primeira carta de Rodrigo a Paiva, em 4 agosto de 1938, respondida já no dia 10, dando início ao diálogo epistolar que vai perdurar até 1969. Em 13 de maio de 1969, Paiva recebeu a última carta de Rodrigo, datada do dia 5, e anotou no envelope: “J. M. J. Recebi hoje, 13 de maio de 1969, pelas dez e meia, o remet. já faleceo”. Às vésperas de grave operação, a que não resistiria, Rodrigo se despediu do amigo: “O zelo e o desvelo com que o senhor, por longos anos, protegeu o monumento e todos os valores a ele pertencentes nunca lhe será agradecido bastante. De minha parte, sempre o considerarei um dos maiores beneméritos da Igreja e da Ordem de São Francisco de Assis de Ouro Preto”.

Reconhecendo a dedicação e a integridade do homem que cuidava da conservação da Matriz de Antônio Dias e das igrejas de São Francisco de Assis e de Nossa Senhora das Mercês e Perdões (Mercês de Baixo), Rodrigo chamou-o para atuar no Iphan e nele teve um colaborador extraordinário. Paiva se responsabilizou por copiar à mão, em tempo de precária reprografia, documentos de interesse do instituto por ele minuciosamente pesquisados nas paróquias de Antônio Dias e do Pilar. E o fazia com sua letra esplêndida, à maneira dos melhores calígrafos do século 18. Parecem documentos setecentistas as cartas e cópias que remetia sistematicamente ao diretor da instituição, no Rio de Janeiro.

Aleijadinho Em julho de 1943, Rodrigo enviou a Paiva recorte do artigo de sua autoria em 'A Manhã', jornal carioca, no qual comentou “a grande contribuição das pesquisas de Manuel de Paiva para a história da arte no Brasil”. Referiu-se, em especial, à descoberta da atividade do Aleijadinho na Igreja de São José, em Ouro Preto, resultado dessa investigação nos arquivos da cidade. O trabalho durante anos seguidos levou Paiva a achados admiráveis. Ele encontrou recibos e contratos que provam a participação de grandes mestres em diversas obras realizadas em Ouro Preto ao longo do Ciclo do Ouro, começando pelo Aleijadinho. Em forte expectativa, Paiva investigava e Rodrigo arrolava as descobertas, o que permitiu ao diretor do Iphan escrever notáveis ensaios sobre a arte colonial mineira. O dicionário dos artistas, artífices e artesãos do período colonial em Minas nasceu da tarefa monumental de Paiva.

Problemas e desafios da política de proteção do patrimônio, desentendimentos e incompreensões, as descobertas da pesquisa documental, entre variados acidentes de percurso, como doenças, perdas, angústias e aflições, percorrem as cartas. Paiva tem linguagem ainda cadenciada pelo estilo oitocentista, típica dos antigos escribas oficiais, e Rodrigo é comedido e parcimonioso, como impoluto dirigente de órgão público. Mas ambos não escondem a paixão pelo patrimônio cultural e o amor a Ouro Preto.

É um privilégio para a história da proteção patrimonial no Brasil o acesso a essa correspondência, publicada graças ao trabalho de organização levado a efeito pelo diretor do Icam, Amílcar Martins Filho, membro da Academia Mineira de Letras (AML), e Cleber Araújo Cabral. Clara Alvim, filha de Rodrigo, e Carlos Magno de Souza Paiva, bisneto de Manuel José, enriquecem a edição com depoimentos expressivos. Clara e Magno também se dedicam a tarefas cruciais no campo do patrimônio.

Trata-se de livro tão benfeito que um esclarecimento sugere registro. A foto de Manuel de Paiva recebendo uma condecoração não refere à mencionada comenda do governo do estado, mas à Medalha do Aleijadinho, que no flagrante lhe é entregue pelo prefeito Genival Alves Ramalho, tendo ao lado o secretário municipal de Turismo, José Geraldo Pereira, e o assessor Carlos Gabriel de Andrade.

 

Angelo Oswaldo de Araújo Santos é presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram)

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