Chega às livrarias 'A irmandade da uva', escrito por John Fante há 36 anos

Ficção se entrelaça com elementos confessionais do autor para revelar a saga de Henry Molise

por Diego Ponce de Leon 10/08/2013 06:00
Arquivo
John Fante: escrita ágil, objetiva e perturbadora (foto: Arquivo)
Começar a falar de John Fante (1909 – 1983) citando Charles Bukowski é um clichê literário na mesma medida que omiti-lo seria um crime. Assim, é melhor apelar para a licença poética do clichê, que, embora previsível, revela-se esclarecedor. Eis que o cultuado Bukowski se comprometeu a entregar uma encomenda literária desde que, e somente se, a editora em questão se comprometesse a relançar o clássico 'Pergunte ao pó', de John Fante. Eles sucumbiram de tal forma que cumpriram o combinado e estenderam a ação para os demais títulos de Fante. Era o escritor favorito de Bukowski. Sem dúvida aparente.

O pó de Fante inaugurou a escola literária que seria consolidada nos livros seguintes (e um anterior) por meio do alterego e personagem recorrente Arturo Bandini. Entre méritos menores, Fante precedeu o movimento beatnik, que se consagraria nas estradas de Jack Kerouac. A escola literária referida não leva nome, se não a de seu criador. Uma escrita ágil e objetiva. Uma porrada literária sóbria. Assim se deu com o pó, e assim se dá com o vinho Angelo Musso, que provoca a analogia velada em 'A irmandade da uva', finalmente lançado no país.

Boêmios
A espera é tardia, mas, no que concerne a 'A irmandade da uva', tudo parece seguir um compasso mais letárgico. Escrita em 1977, a obra apareceu depois do jejum de 25 anos sem incursões no mercado editorial (o anterior 'Full of life' data de 1952). Se a metáfora cabe (já que a verve passeia por entre vinhos e uvas), melhor pensar que o livro precisou envelhecer em barris de carvalho até ficar devidamente encorpado e pronto para a degustação. O buquê é convidativo.

Como todas as empreitadas de Fante, 'A irmandade da uva' apresenta elementos confessionais e brinca com o leitor, que passa a questionar o autobiográfico e a ficção. Na história, Henry Molise descreve a relação perturbada com o pai, Nick (“deplorável, miserável, embaraçoso, revoltante, desavergonhado, estúpido, grosseiro, feio e bêbado – o pior pai que um homem podia ter”). Apesar dos adjetivos pouco elogiosos, Nick permanece casado. A esposa sofre com os abusos hiperbólicos do marido alcoólatra e frio, mas não se separa. Uma perturbação esmiuçada por Fante. Além de Henry, os demais filhos carregam o fardo do pai problemático.

A jornada que o livro propõe jaz no retorno de Henry para a cidade natal, em uma tentativa de lidar com a notícia de que finalmente os pais vão encarar o divórcio. Embora episódios anteriores tenham sido registrados, leva-se a crer que o fim da relação não tardará, exigindo uma descomunal doação por parte dos envolvidos para dissolver todas as amarras que aquele casamento carrega há tantos anos. E não são poucas.

O velho Nick, indiferente às circunstâncias familiares, exige apenas ser reconhecido como o bom pedreiro da cidade (que sempre foi) e pretende encarar um último serviço, cujo término depende do auxílio do filho. Pede ainda poder desfrutar da companhia dos outros boêmios da pequena cidade de San Elmo (“velhos canalhas maldosos, amargos e intensos que rosnavam, mas se deleitavam no humor cruel, na profanação e no companheirismo”), que se reúnem em torno de garrafas do vinho Angelo Musso (daí a irmandade da uva). Henry encontra, então, caminhos que o levam ao passado e que podem, eventualmente, conduzir a uma compreensão íntima do pai, jamais imaginada.

Entre o ponto de partida e o destino, Fante desmembra a classe média, aborda mazelas domiciliares, repensa a família, as amizades. Quebra paradigmas. Perturba. O resultado para um leitor desavisado pode ser devastador. Para os assíduos, outra latente lição. Seja qual for a intimidade com o submundo de Fante, o caminho a trilhar parece único: embebede-se.

A IRMANDADE DA UVA
. De John Fante
. José Olympio, 224 páginas, R$ 35

TRECHO

“Meu pai teria sido um homem mais feliz sem uma família. Não fossem seus quatro filhos, teria se divorciado e partido havia muito tempo para outras cidades. Adorava Stockton, que era cheia de italianos, e Marysville, onde a gente podia jogar na loteria chinesa dia e noite. Seus filhos eram os cravos que o crucificavam à minha mãe. Sem filhos, estaria livre como um passarinho.

Não gostava de nós em particular e com toda a certeza não nos amava nem um pouco. Éramos apenas crianças comuns, simples e indistintas, e ele esperava mais. Éramos tarefas a serem cumpridas. (…)

Ninguém cruzava com ele sem uma batalha. Desgostava de quase tudo, particularmente da mulher, dos filhos, dos vizinhos, da sua igreja, do padre, da sua cidade, do seu estado, do seu país e do país do qual havia emigrado. Não dava a menor importância ao mundo também, ou ao sol e às estrelas, ou ao universo, ao céu ou ao inferno. Mas gostava das mulheres.”

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