Paulo Mendes Campos ampliou os limites da crônica para as fronteiras do ensaio

Prova disso está nos livros 'O amor acaba' e 'O mais estranho dos países', que ganharam reedição caprichada

por Severino Francisco 10/08/2013 06:00
Badaró Braga/O Cruzeiro - 10/08/1960
(foto: Badaró Braga/O Cruzeiro - 10/08/1960 )
 Fernando Sabino, Rubem Braga e Paulo Mendes Campos eram amigos inseparáveis e cronistas de jornais concorrentes. Fernando escrevia para 'O Jornal', Braga publicava no 'Diário de Notícias' e Paulo no 'Diário Carioca'. Na mesa de bar, não raras vezes, surgiam assuntos partilhados pelos três, conta Sabino em célebre texto sobre os “condenados à crônica”. Quando as ideias minguavam, o desesperado de plantão pedia, descaradamente, uma crônica emprestada. Certa vez, Braga recorreu ao expediente infame. Sabino cedeu uma sobre o menino que pedia sopa em uma casa de pasto. Braga requentou a sopa, mudou o preço e pôs o título “A sopa”. Chegou o dia em que Sabino estava no aperto, solicitou o empréstimo da crônica e recebeu de volta a mesma sopa. Reciclou tudo e publicou com este título fulminante: “Esta sopa vai acabar”.


A historinha é evocada para falar de dois volumes de crônicas de Paulo Mendes Campos, O amor acaba e O mais estranho dos países (Cia. das Letras), porque ela é bastante reveladora do ambiente e do entrelaçamento da trajetória dos grandes cronistas brasileiros formados pelo modernismo. Eles partilhavam inquietações, temas e até textos inteiros (devidamente recriados). Os dois volumes, organizados por Flávio Pinheiro, marcam o lançamento de 15 títulos do autor pela Companhia das Letras, a partir de pesquisa no acervo do Instituto Moreira Salles, que guarda a obra do mineiro.

As coletâneas estão divididas em sessões temáticas. O mais estranho dos países apresenta a agudeza de Paulo Mendes Campos ao revelar a alma dos lugares em que viveu ou por onde viajou e a mestria na construção de perfis. A vertente sobre o Brasil nos anos de euforia desenvolvimentista e modernista da década de 1960 é perpassada de finas observações críticas: “Deixa isso pra lá é uma simpática fórmula do perdão nacional; já o rouba mas faz é uma ignorância vertiginosa”.

Vinicius de Moraes, Aníbal Machado, Fernando Sabino, Di Cavalcanti, Carlos Drummond de Andrade e Lamartine Babo ganham vida por meio de retratos atilados, bem-humorados e afetuosos, com olhar de cronista. Vejamos o que Paulo diz de Lamartine Babo: “Ele dispunha em quantidade generosa do que me escasseava: alegria. Eu, desempregado da alegria, tinha que lhe dar essas ‘facadas’ de bom humor”.

Turbulência dramática As crônicas líricas e existenciais estão reunidas em O amor acaba. Mas Paulo não costumava escrever sobre nada; sempre tinha assunto no bolso e raramente se instalava “ao rés do chão”, como, por exemplo, o amigo Rubem Braga. Em vez de dissimular ou contrabandear a poesia, o autor assume despudoradamente a condição de vate e se lança em altos voos de reflexão. É cronista-poeta, cronista-jornalista, cronista-ensaísta a destilar ceticismo e lirismo em divagações vagamente filosóficas, atento aos movimentos de turbulência dramática da alma de mineiro, às invenções da ciência, às novas tecnologias de comunicação e às tendências do comportamento. Sua frase elegante tem fluência musical e é construída com palavras precisas, capazes de expressar os matizes mais sutis das cenas, da imaginação ou dos estados de alma.

Tamanho requinte estilístico sugere formação erudita, mas ele não a conquistou nos bancos de escola. O único curso que Paulo concluiu foi o de datilografia. Era o suficiente para quem tinha vasta cultura e proporcional sensibilidade, observa Sérgio Augusto, em excelente texto para o posfácio. Sempre movido por seu ânimo anárquico, Paulo Mendes Campos borboleteou pelos cursos de odontologia, direito, farmácia e veterinária. Começou profissionalmente como mata-mosquitos da Secretaria de Saúde de Minas Gerais, mas garantiu a sobrevivência graças a malabarismos com as palavras, a ponto de imaginar a criação de um escritório de “fazeção de textos”. Espalhou largamente seu talento em crônicas, reportagens, entrevistas, traduções, poesias, roteiros de cinema e anúncios de publicidade. A erudição nunca foi peso para ele, que sempre exercitou o senso de humor: “Ari Barroso não foi tão assíduo quanto Antônio Maria no Ministério da Noite, mas não chegou a ser um funcionário relapso”.

Apocalipse íntimo
É difícil falar de Paulo Mendes Campos sem mencionar Otto Lara Resende, Fernando Sabino e Hélio Pelegrino, seus amigos mineiros desde os tempos da adolescência em Belo Horizonte. Eles eram os “quatro cavaleiros de um apocalipse íntimo”, na definição de Otto. Percorriam as noites de BH bebendo, conversando (muito sobre literatura) e “puxando angústia”.

Na condição de mineiros incorrigíveis, introspectivos, angustiados e dramáticos, os quatro trocaram as montanhas pelo mar, Belo Horizonte pelo Rio de Janeiro, atraídos pela força solar, dionisíaca e leviana daquela cidade litorânea. Na crônica “Mulheres bonitas”, Paulo discorre sobre o espírito carioca encarnado na beleza tentadora de suas mulheres: “Às moças montanhesas falta (se me entende, por favor) um vago toque de obscenidade, que é a raiz do magnetismo animal. Era o Rio uma cidade fascinante e perigosa, feita de braços, coxas, seios, cabeleiras, lábios”. E complementa: “Os grandes pecados públicos não são para Minas Gerais, e o Rio pecava às escâncaras, sem pudor, com alegria e confiança. Oh, Minas Gerais!”.

Mendes Campos se tornou mais leve e quase carioca no Rio de Janeiro, uma cidade absorvente, mas não deixou de “puxar angústia”, de desconfiar e de fazer reflexões existenciais sobre suas perplexidades muito mineiras. Certo dia, passou um fim de semana tão perfeito na casa de amigos à beira-mar que chegou a ficar irritado com a própria felicidade: “Sem minhas atribulações, sou o atribulado, a própria atribulação; sem minhas angústias, sou a angústia; sem minhas infelicidades, sou o infeliz. Descobri isso finalmente. A felicidade, madame, é horrível. Sem sofrer, sofro demais. Assim, tudo, Senhor, menos ser feliz. Minha libertação não é essa, essa eu não aguento. Tudo, menos achar que a vida é boa. Deus me abandonou à felicidade, e me dei mal”.

Crônica de ideias
As duas coletâneas de crônicas chegam em edição esmerada, com textos de Flávio Pinheiro, Sérgio Augusto, Otto Lara Resende e Ivan Marques, que elucidam e lançam nova luz sobre a escrita requintada do escriba-jornalista mineiro. Com os amigos Fernando Sabino e Otto Lara Resende, Paulo brilhou nas melhores revistas e jornais do país. Sérgio Augusto afirma que, dos três craques da crônica, PMC foi o mais injustiçado, em vida e na posteridade. O que explicaria esse claro enigma?

Cia. das Letras/divulgação
(foto: Cia. das Letras/divulgação)
Sérgio formula a hipótese de que isso ocorreu em razão da timidez e do fato de Paulo Mendes Campos ter sempre evitado “os refletores e o picadeiro literário”.

No entanto, suspeito que a razão esteja em outro lugar. Rubem Braga era ainda mais avesso à badalação e parecia ostentar na testa um cartaz com os dizeres: “Cuidado, cronista feroz! Ele morde!”. Mesmo assim, alcançou larga fama. Sem ser pedante ou esotérico, Paulo Mendes Campos escreve, não raras vezes, em um registro culto, o que restringe o alcance de sua recepção. É preciso um repertório mínimo para navegar por boa parte de seus textos.

Em entrevista concedida ao Pasquim, na década de 1970, alguém perguntou a Paulo: “O que é a crônica?” E ele respondeu: “É tudo o que eu escrever embaixo retranca crônica, com a minha assinatura”. Essa é, simultaneamente, sua força e sua vulnerabilidade. Ampliou os limites da crônica para as fronteiras do ensaio. No entanto, com isso fala, algumas vezes, mais à nossa inteligência do que à nossa alma ou ao nosso coração, embora não seja racional nem cerebral.

Raramente ele abraça a experiência cotidiana. É, principalmente, um cronista de ideias. Paulo Mendes Campos é o nosso Montaigne tropical, um Montaigne com veia poética, sensualidade e senso de humor. O melhor acontece quando os seus ensaios enveredam pela divagação lírica caprichosa.

A impressão final da leitura das duas coletâneas é de um conjunto desigual, mas muito rico. Paulo Mendes Campos acumulou produção de alta qualidade nas páginas efêmeras de jornais e revistas, diariamente ou semanalmente, em dramática contagem regressiva contra os ponteiros dos relógios marcando a hora fatídica do fechamento da edição: “Uma jovem se deslocava para a praia, tão esbelta, tão serena, tão irresistível, tão harmonizada aos acordes da paisagem, tão bem estruturada no espaço, tão matinal e marinha, tão suave, tão intangível e hierática, tão feérica na sua beleza castanha, que só não voou e virou gaivota porque não quis”.

 

O MAIS ESTRANHO DOS PAÍSES
De Paulo Mendes Campos
Companhia
das Letras, 345 páginas, R$ 45

 

O AMOR ACABA
De Paulo Mendes Campos
Companhia
das Letras, 280 páginas, R$ 39

 

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