Romancista John Banville conduz o leitor por labirintos do passado e do presente

"Não existe lembrança, mas invenção", garante o irlandês, cotado para o Nobel

por Vanessa Aquino 03/08/2013 00:13
REUTERS/Kieran Doherty
Tempo e memória estão presentes nos jogos de linguagem e em construções diretas (foto: REUTERS/Kieran Doherty)

"Billy Gray era meu melhor amigo e me apaixonei pela mãe dele". Esta mensagem, já no início de Luz antiga (Biblioteca Azul/Globo Livros), dá pistas das provocações que o leitor encontrará ao longo do romance do premiado escritor irlandês John Banville. Esse livro encerra a trilogia formada com Eclipse e Shroud (ainda sem tradução).

Tempo e memória estão presentes nos jogos de linguagem e em construções diretas, que, simultaneamente, sugerem densidade e lirismo. A narrativa de Banville faz o leitor passear pelo ritmo da prosa e ser levado por ela ao encontro de memórias, sonhos, alucinações e lutos do personagem Alexander Clave, um ator fracassado, imerso na viagem por tempo e espaço.

Banville cria um amálgama entre imaginação e memória. Prende o personagem ao passado e o joga ao presente por meio do fluxo de consciência. Clave guarda a dor da lembrança da morte da filha e recorda com pesar o primeiro amor e a confiança traída durante o relacionamento com a mãe do melhor amigo. Esse romance acaba instigando o leitor a refletir sobre como a imaginação inventa memórias e sobre a onipresença do passado na vida que se constrói no presente.

O jogo com o tempo irrompe em toda a narrativa. Como, por exemplo, quando Alexander Clave é convidado a interpretar no cinema um jornalista e professor universitário, cuja biografia, cheia de idas e vindas e contradições, recebe o nome de A invenção do passado.

Clave também tece crítica breve às imagens suntuosas e metáforas usadas para camuflar medos e intenções do autor da biografia. "O estilo da prosa foi o que me impressionou primeiro, e com maior impacto – na verdade, quase me fez cair para trás. Simples afetação, ou tomada de posição intencional? Ironia permanente e generalizada? Retórico ao extremo, de uma elaboração teatral, totalmente sintético, artificial e atravancado, é um estilo do tipo que poderia ter sido forjado por algum escriba desimportante do tribunal de Bizâncio (...). Nosso autor tem leituras extensas, mas assistemáticas, e usa as esmeradas proporções que colheu nesses livros para tentar ocultar sua formação insuficiente".

Vencedor do Man Booker Prize – considerado o prêmio mais importante da literatura inglesa – e cotado para o Nobel de Literatura, Banville expõe o que pode ser sua própria reflexão acerca dos tecidos forjados pelo tempo dentro e fora da ficção. A crítica o compara aos irlandeses Samuel Backett e James Joyce, além do russo Vladimir Nabokov.

Para o crítico George Steiner, Banville é "o romancista mais imaginativo da língua inglesa da atualidade".

:::Entrevista:::
"Sonho controlado
"

EM - Luz antiga traz os personagens Alexander Clave e sua filha Cass de volta. Essa nova história estava nos planos desde o primeiro livro?

R. Não pretendia escrever três livros com esses personagens, e, portanto, não tenho certeza de que seja, na verdade, uma trilogia. Quanto mais velho fico, menos planejo. Quando era jovem, pensava ter o controle de tudo, e agora vejo que o processo de escrever ficção é como sonhar – uma espécie de sonho controlado, se você quiser. Por que revisitei Alex Cleave, Cass e Axel Vander? Não sei, devia ter negócios inacabados com eles. Meu amigo, o escritor argentino-espanhol Rodrigo Fresán pede-me para escrever O livro de Cass, mas não acho que posso. Ela é um enigma, e deve permanecer assim.

EM - Pode-se dizer que existe uma intenção por trás do escritor? O que o motiva a escrever?

R. A motivação para escrever é, para mim, o mesmo que a motivação para respirar, que me mantém vivo. Muitas vezes, penso que a realidade não é muito real até tê-la filtrado através da malha de palavras. Quanto às intenções, não tenho certeza quanto à intenção para escrever. Parece-me, cada vez mais, um processo involuntário. Mas, talvez, seja apenas preguiçoso demais para tentar me fazer entender. Ou talvez esteja me protegendo contra o excesso de autoconhecimento...

EM - Muitos escritores precisam se isolar para escrever. Com o senhor ocorre o mesmo?

R. Tenho um pequeno apartamento no Centro de Dublin, onde trabalho diariamente das 9h às 18h. Não sou um daqueles escritores que se levantam às 3h para escrever, enquanto todo mundo está dormindo – isso me parece por demais estranho. Gosto de ouvir os ruídos do mundo em torno de mim enquanto trabalho. Nos últimos anos, muitas famílias imigrantes se mudaram para o complexo onde tenho apartamento. Nas tardes, suas crianças brincam no grande pátio embaixo de minha janela, as vozes se levantam para mim em deliciosa mistura. Esse fenômeno começou quando escrevia o romance As infinidades, que é preenchido com as vozes dos deuses. Agora me pergunto se, de fato, as vozes das crianças no pátio ecoaram no meu livro.

EM - Como é o seu processo criativo?

R. Minha unidade básica para o trabalho é a sentença. Já disse muitas vezes: se fosse perguntado sobre a maior invenção da humanidade, responderia que é a sentença. Meu método estrutural é fazer com que cada frase seja a mais perfeita que eu puder escrever.

EM - Em Luz antiga, a memória é instrumento da narrativa, expressa o fluxo de consciência do personagem. Como é trabalhar o tempo dentro da trama, um tempo inserido em contexto tão íntimo do personagem?

R. O passado sempre me fascinou, mesmo quando era jovem e não havia acumulado muita coisa. Por que o passado parece importante, tão significativo? Afinal, ele também era o presente antes de se tornar o passado, e deve ter sido tão sem graça e mundano como o presente é presente. O que faz do passado algo brilhante? Não posso responder a isso, mas a pergunta me obceca e permeia o meu trabalho.

EM - Há diferença entre memória e invenção? Pode-se dizer que a imaginação cria as memórias do personagem?


R. Não existe lembrança, mas invenção. Estou cada vez mais convencido de que a memória e a imaginação são dois nomes para a mesma coisa. De fato, neurocientistas estão começando a pensar que é isto mesmo: não recordamos o passado, mas somente imaginamos o que o passado pode ter sido. É uma área fascinante de pesquisa, e gostaria de ter conhecimentos a respeito.

EM - O autor consegue se distanciar completamente de sua ficção?

R. Coloquei todas as minhas experiências em minhas histórias, mas as transformei no processo. Como Wallace Stevens diz em seu grande poema sobre a arte, “O homem da guitarra azul”, as coisas/ como estão são mudadas em cima da guitarra azul. E Henry James observa: a arte torna a vida. Isto é, formas de vida nos oferecem, aos leitores, o sentimento acelerado do que é estar vivo, estar consciente. Se a arte tem qualquer finalidade, é esta.

EM - O sentimento de perda e luto está muito presente nos personagens Alexander Clave e sua mulher. É um sentimento muito vivo, muito real, que transcende a ficção. Há algo seu nesse sentimento? Ou se trata de memória inventada?

R. Na ficção, tudo é inventado. Inclusive, e principalmente, as experiências reais. Quem não experimentou a perda e a melancolia de moagem da vida juntamente de suas glórias?

Biblioteca Azul/reprodução
(foto: Biblioteca Azul/reprodução)



:::LUZ ANTIGA
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. De John Banville. Tradução: Sergio Flaksman
. Editora Biblioteca Azul/ Globo Livros
. 336 páginas, R$ 39,90

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