Na berlinda

por Luisa Brasil 27/07/2013 00:13
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Rojas

 ALEX SILVA/AE - 2/8/08
A precariedade dos sistemas de transporte coletivo foi o estopim dos protestos de junho, que começaram em São Paulo, onde as vias estão cada vez mais congestionadas, e se alastraram pelo país afora (foto: ALEX SILVA/AE - 2/8/08)
Os protestos de junho talvez tenham sido, na história republicana brasileira, os mais amplos no que se refere ao alvo das manifestações. Porém, no meio de tantas reivindicações, algumas se sobressaíram. Foram elas as da educação, da saúde e da mobilidade urbana, pano de fundo de uma discussão mais ampla, sobre a forma de organização das próprias cidades. Nas páginas seguintes, Pensar & Agir faz uma reflexão sobre a mobilidade urbana e a organização de nossas metrópoles e sobre a situação da educação e da saúde. O artigo sobre as metrópoles é de Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Rojas, dois pesquisadores do Observatório das Metrópoles.

Se hoje o número de indagações ultrapassa de longe os ensaios de resposta sobre a natureza e o sentido dos movimentos reivindicatórios que mobilizaram os jovens nas praças e avenidas das principais cidades do país, algumas hipóteses podem e devem ser levantadas em relação a duas dimensões que figuraram como novas e inesperadas expressões desse movimento de natureza e extensão também inéditas: uma é a forma de ação – avessa a todas as organizações associativas tradicionais, notadamente os partidos políticos, mas também sindicatos, associações profissionais e comunitárias, etc; a outra é o objeto da ação – uma agenda difusa de temas de orientação ética e moral deflagrada por um problema central da vida das grandes cidades: a precariedade do transporte público e crescente limitação da mobilidade urbana. Problema, por seu turno, que no correr dos dias alastrou-se para outros aspectos do cotidiano das cidades brasileiras – na crítica à precariedade dos seus serviços básicos, que estão na raiz de nosso mal-estar urbano. Da análise dos movimentos das ruas, destacamos, antes de mais nada, que os jovens promoveram associação inédita entre a crítica ao nosso modelo de cidade, de um lado, e a defesa de valores éticos que denunciam aspectos patrimonialistas do nosso Estado e a dinâmica excludente e segregacionista da vida de nossas cidades, de outro.

O descolamento e mesmo a visão crítica dos jovens em relação aos partidos políticos em todas as passeatas traduzem fenômeno que nem é peculiar à situação brasileira, nem representa novidade para aqueles que acompanham a cena política aqui e alhures: a crise dos pilares centrais das democracias representativas – em especial, a perda crescente de legitimidade do sistema dos partidos políticos como instrumentos de vocalização das clivagens sociais e das demandas cidadãs. A deserção da militância dos partidos tradicionais, o crescimento dos eleitores independentes, o surgimento de legendas novas e candidatos independentes são eventos que salpicam nas principais democracias consolidadas europeias há pelo menos duas décadas.

Cabe aqui assinalar, no entanto, que, se o afastamento entre o sistema político e a cidadania é tendência do conjunto das democracias, o distanciamento entre a polis e a demos entre nós assumiu dimensão inaudita. Vale aqui a autocrítica por parte daqueles que avaliaram a governabilidade de nosso sistema político tão somente a partir do segundo andar desse sistema, a saber, a partir das relações entre o Executivo e o Legislativo, limitando a análise aos sinais do aparente sucesso do nosso presidencialismo de coalizão. Para estes analistas, o presidencialismo de coalizão bem azeitado seria condição suficiente para garantir ao país as condições de governabilidade. Ora, nos esquecemos, com raras exceções, de olhar para o primeiro andar de nosso sistema político, a saber, para os mecanismos de representação e para a capacidade de o sistema representativo absorver e processar as demandas sociais.

Vale ainda assinalar para um aspecto não menos importante da dinâmica política dos atuais movimentos. Tudo leva a crer que nossos indignados tenham por base social jovens oriundos da classe média clássica, ou seja, os detentores de parcelas expressivas do capital cultural da sociedade. A classe média que desde 2004 se viu desalojada da atual coalizão de forças no poder, a qual comporta as elites conservadoras e as pretensamente progressistas e os segmentos populares tradicionalmente desorganizados e transformados pelos think tanks do establishment na "nova classe média". Em As bases sociais lulismo, André Singer mostrou com clareza a transformação ocorrida na base da coalizão no poder ao longo dos últimos anos: a classe média urbana que constituiu a base da eleição de Lula em 2002 foi substituída pelos segmentos mais pobres a partir de 2004, com a expressiva ampliação de programas de inclusão como o Bolsa Família, e sob os impactos políticos da sua inserção no mercado de consumo dos bens duráveis. Não seria equivocado afirmar que, fora da coalizão de poder, órfãs de representação política e eventualmente ameaçadas em suas fronteiras de distinção social, as ruas vocalizam, em grande medida, o deslocamento desse segmento social para as margens do esquema de poder.

Cabe, também, avaliarmos o que para muitos analistas representa o aspecto mais enigmático das ações: a forma como os jovens multiplicaram-se pelas ruas, sem qualquer sinalização de lideranças carismáticas, a partir de redes sociais, numa escalada em que a progressão dos números se acompanhava pela diluição e mesmo alteração da agenda inicial e pela absoluta falta de condução. A primeira pergunta que se faz é: trata-se de um movimento social? Cremos que não. Estamos diante de um fenômeno de ação coletiva, mas não de um movimento social. Este pressupõe, ao menos,  estratégia e, em alguns casos, táticas. As mobilizações acompanharam-se pela própria definição do significado ou dos significados últimos da ação.

A forma de ação de nossos indignados não seria novidade para um conjunto de analistas que tem sugerido e verificado que, concomitantemente à crise das instituições, ganha terreno nas democracias uma nova cultura política, que traz como traços centrais a automobilização, em detrimento das formas clássicas de ação coletiva no campo da política, a orientação em torno de valores pós-materialistas e a ideologia da horizontalidade. A busca de reconhecimento e a autoexpressão são ingredientes adicionais presentes no que chamaríamos de nova cultura cívica. Se são os jovens e mulheres os principais atores portadores desta nova cultura política, aqui vale uma nota sobre a peculiaridade brasileira: vivemos momento singular de nossa história demográfica, em que os jovens de 14 a 24 anos passaram a compor o corte de maior peso no conjunto da população brasileira, especialmente nas metrópoles.

Sem sombra de dúvida, os atos que ocorreram nas ruas seguiram de maneira quase que coreografada o roteiro dos elementos centrais dessa nova cultura cívica: jovens movidos por uma agenda difusa de natureza pós-materialista, com a ênfase na cobrança de comportamento ético das lideranças políticas, a automobilização e a recusa de atribuição de legitimidade tanto às organizações políticas tradicionais, como a líderes carismáticos, com o espaço público ocupado por ativistas ciosos de reconhecimento e de autoexpressão. Se essa análise tem pertinência, podemos, desde já, projetar uma consequência dos atos em curso: dificilmente espera-se das ruas o renascimento da vida associativa como no passado o conhecemos. Trata-se de novo civismo.

Civismo e modalidade de participação em congruência com o que se designa por efeito metrópole sobre a constituição do sujeito: os movimentos nascem do caldo cultural próprio da metrópole. Cabe aqui lembrar que, se as primeiras reflexões dos clássicos sobre a vida nas cidades, como as de Simmel, supunham o aniquilamento das individualidades pela urbis, a visualização dos movimentos expressa algo novo, um próprio metropolitano, com dinâmica avessa àquela antevista pelos estudos inaugurais sobre o efeito da vida urbana. Em vez de expressar uma opressão dos indivíduos, a vida espiritual da metrópole abre espaço para sua mais plena manifestação: cada um é convidado a criar a sua reivindicação, insatisfação e rebeldia. Longe de produzir o nivelamento homogeneizador e anulador das diferenças, a cultura metropolitana traz o seu contrário: o coletivo sem vida ganha espírito pelas manifestações de todas as individualidades possíveis. A incongruência, diversidade e mesmo antagonismo das palavras de ordem, insígnias e cartazes vistos nas ruas são a expressão mais genuína desse espírito.

Cabe, por fim, lembrarmos que o mal-estar urbano constitui o estopim das manifestações subsequentes, mal-estar focalizado em tópico de relevância que atravessa a dinâmica das nossas cidades: a precariedade do sistema de transporte e mobilidade urbana cada vez mais exígua. Mas esses dois problemas são apenas a ponta de um grande iceberg mergulhado no sentimento de indignação dos habitantes das metrópoles diante dos evidentes efeitos da privatização da política. A cidade vem sendo transformada em máquina de produção de emprego, renda, consumo e votos, que reproduz em nova escala e novos formatos os velhos e os novos interesse da acumulação privada de riqueza e de poder político. A experiência cotidiana dos moradores das grandes cidades produz um forte sentimento da dissociação aguda entre o sistema político e a sociedade. 

Onde é decidida a realização das grandes obras apresentadas como padrão Fifa ou padrão Comitê Olímpico? Quem decide? A quem recorrer quando os sucessivos desastres urbanos acontecem? Cabe aqui especularmos em que medida as ruas estão introduzindo uma temática nova: a politização da questão urbana pela enunciação das múltiplas dimensões dos conflitos que se armam em torno da produção e uso da cidade. Entre a cidade-mercadoria e a cidade-riqueza social promotora do bem-estar da coletividade.


. Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro é coordenador nacional do INCT Observatório das Metrópoles e professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur/UFRJ)

. Nelson Rojas é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e pesquisador do Observatório das Metrópoles na linha sobre governança metropolitana

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