Crônicas de Rubem Braga são um marco na literatura brasileira

Entre os temas urbanos e a sabedoria dos homens simples do interior, textos ainda são capazes de emocionar

Arquivo O Cruzeiro
Rubem Braga: eterno repórter em busca da poesia do cotidiano (foto: Arquivo O Cruzeiro)
Rubem Braga, o capixaba-mineiro-carioca, se estivesse vivo (e está), teria feito 100 anos em janeiro. É um dos melhores cronistas do Brasil – senão o melhor. Ele soube, segundo Alexandre Meirelles, fundamentar sua prosa “numa poética capaz de transfigurar o menor dos acontecimentos em uma experiência das mais significativas”. 'O conde e o passarinho', 'O Morro do Isolamento', 'A cidade e a roça', 'Ai de ti, Copacabana', 'As boas coisas da vida', 'Aventura', 'Cadernos de guerra' e mais outras são antologias da mais fina crônica brasileira.

Rubem Braga, “o bicho do mato cosmopolita”, como o chamou Tônia Carrero, o “Urso”, como o apelidaram seus amigos, “o máximo dos cronistas”, como o classificou Clarice Lispector, merece para sempre ser louvado. A mim, particularmente, deu-me um presente, justo no mês de seu centenário.

Foi assim. Fomos a Boa Esperança, terra de minha mulher. Chovia muito. Dia e noite. Não podendo ir logo para a roça, que se acha nos aclives da serra imortalizada por Lamartine Babo, ficamos na cidade.

Na pequena biblioteca que herdei dos sogros, procurei um livro para passar o tempo. Nada melhor que ler em dia de chuva. Ou em qualquer dia.

Atraído pela lombada alaranjada e descorada de um livro relativamente fino, peguei-o. Era 'A cidade e a roça', de Rubem Braga, que eu presenteara a meu sogro no Natal de 1964. Publicado em 1956, pela Editora do Autor (Rio de Janeiro, 2ª edição), tem 32 crônicas a versarem preciosamente sobre os dois ambientes mencionados em seu título: a cidade e a roça, os dois objetivos de nossa rápida viagem.

Em 89 páginas, cujos originais foram escritos de 1953 a 1955, o homem de Cachoeiro do Itapemirim, o bacharel pela Casa de Afonso Pena, o correspondente de guerra na Itália, o “solteiro feliz” de Ipanema deixou textos de humor, de saudade, de tristeza, de amor e de sabedoria.

Associando-me às homenagens que estão a se prestar ao grande cronista e, em retribuição ao presente que ele me deu naqueles dias pluviosos, ofereço aos leitores alguns belos trechos de 'A cidade e a roça'.

Em “Opala”, numa tarde-noite urbana, ele fala de amigos e da bela Joaquina:

“Vieram alguns amigos. Um trouxe bebida, outros trouxeram a boca. Um trouxe cigarros, outro apenas seu pulmão. Um deitou-se na rede, e outro telefonava. E , Joaquina, de mão no queixo, olhando o céu, era quem mais fazia: fazia olhos azuis. (...) À meia-noite, sentimos que o apartamento estava mal apoiado no bairro e derivava suavemente em direção da Lua. (...) Joaquina dormia inocente dentro de seus olhos azuis; o pecado de sua carne era perdoado por uma luminescência mansa que se filtrava nas cortinas antigas. Havia um tom de opala. Adormeci”.

Ainda em cenário carioca, ao comentar reclamação de seu vizinho sobre barulhos noturnos em seu apartamento, Rubem Braga, com a conhecida verve, envia o seguinte “Recado ao senhor 903”:

 “Eu, 1.003, me limito a leste pelo 1.005, a oeste pelo 1.001, ao sul pelo Oceano Atlântico, ao alto pelo 1.103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis (...). Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. (...) Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: ‘Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou.’ E o outro respondesse: ‘Entra, vizinho, e come do meu pão e bebe do meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela’”.

Rio antigo  Com triste saudade, porque existe saudade alegre... o cronista, em “Lembranças”, escreve ao amigo Zico (Newton Freitas) e fala de um Rio de Janeiro mais antigo:

“Aqui vamos pelejando neste largo verão. Escrevo com janelas e portas abertas, e a fumaça de meu cigarro sobe vertical. A única aragem é a das saudades. (...) sim, nós éramos estranhos príncipes; e as aflições e humilhações da miséria nunca estragaram os momentos bons que a gente podia surrupiar da vida – uma boca fresca de mulher, a graça de um samba, a alegria de um banho de mar, o gosto de tomar uma cachaça pela madrugada com um bom amigo, a falar de amores e de sonhos. Assim aprendemos a amar esta cidade; se o pobre tem aqui uma vida muito dura, e cada dia mais dura, ele sempre encontra um momento de carinho e de prazer na alma desta cidade, que é nobre e grande, sobretudo pelo que ela tem de leviana, gratuita, inconsequente, boêmia e sentimental. (...) Ainda vale a pena ver o sol nascer no mar; e que a vida poderia ser pior se esta cidade fosse menos bela, insensata e frívola”.

Em “O lavrador”, ele viaja para a roça e admira o homem do campo. Assim:

“Esse homem deve ser da minha idade – mas sabe muito mais coisas. (...) Olho sua cara queimada de sol; parece com a minha, é esse mesmo tipo de feiura triste do interior. Conversamos sobre a pescaria do piau, da traíra. Volta a falar de sua terra e desconfia que sou do governo, diz que precisa passar a escritura. Não sabe ler, mas sabe que essas coisas escritas em um papel valem muito. Pergunta pela minha profissão, e tenho vergonha de contar que vivo de escrever papéis que não valem nada; digo que sou comerciante em Vitória, tenho um negocinho. Ele diz que o comércio é melhor que a lavoura; que o lavrador se arrisca e o comerciante é que lucra mais; mas ele foi criado na lavoura e não tem nenhum preparo. Endireita para mim o cigarro de palha que estou enrolando com o fumo todo maçarocado. Deve ser de minha idade – mas sabe muito mais coisas”.

Ao terminar esta pequena seleção feita em homenagem ao mestre da crônica, volto à cidade com “O gesso”, em que Rubem Braga se refere à estátua de Bluma Wainer (ele não mencionava o nome dela), sua grande paixão, que instalou no “quintal suspenso” de sua cobertura em Ipanema. Leiam:

“Talvez um dia eu mande passar para o bronze; mas me afeiçoei a essa cabeça de gesso encardido que é a única lembrança material que tenho daquela que partiu. (...) Quantas vezes vi esses olhos se rindo em plena luz ou brilhando suavemente na penumbra, olhando os meus. Agora olham por cima de mim ou através de mim, brancos, regressados com ela à sua substância de deusa. Agora ninguém mais a poderá ferir; e todos nós, desta cidade, que a conhecemos um dia; e, mais que todos, aquele que mais obstinada, mais angustiosamente soube amá-la, aquele que hoje a contempla assim, prisioneira do imóvel gesso, mas libertada de toda a dor e toda a paixão tumultuária da vida – todos nós morremos um pouco na sua ausência. (...) À noite, quando volto para casa, a cabeça de gesso me espera – imemorial, neutra, severa, apenas quase triste. E minha ternura é toda sossego e pureza”.

. Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza é integrante da Academia Mineira de Letras e do Grêmio Literário de Lisboa.

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