O canto e grito do povo têm despertado o desejo de discutir o sistema político brasileiro, mas o poder permanece surdo

Pensadores clássicos contribuem para o cenário de ideias e ações

13/07/2013 00:13
Eduardo Nunes Campos

Beto Magalhães/EM/D.A Press
Manifestação no Centro de Belo Horizonte: cidadão desconfia dos modelos tradicionais de representação política e foi para as ruas protestar (foto: Beto Magalhães/EM/D.A Press)
Enquanto a voz das multidões ecoa pelas ruas de todo o país, a surdez do poder acentua-se a cada dia.

Governos e os principais partidos de oposição, atônitos com a avalanche de protestos que varre o Brasil de norte a sul, ficaram praticamente sem reação nos primeiros dias. Limitavam-se, quando muito, a dizer: “É preciso entender o que está acontecendo”.

A essa altura, certamente já captaram a mensagem. Entender, claro, entenderam. Mas preferem fazer ouvido de mercador, por puro instinto de sobrevivência política.

É o que se pode depreender das propostas de reforma política em debate. Depois do fracasso rotundo da ideia, política e juridicamente insustentável, de uma constituinte específica para tratar do tema, foi a vez de um plebiscito nacional relâmpago aparecer como solução mágica para aquietar o ânimo das massas e fazer parecer que, enfim, os podres poderes entrarão nos trilhos. Descartado como solução imediata, fala-se agora em nova proposta do Congresso, a ser ratificada por meio de referendo.

As forças hegemônicas agem como se fossem capazes de neutralizar a revolta contra os gastos absurdos com a Copa, a indignação contra a malversação do dinheiro público, a intensificação da violência urbana, os crescentes abusos policiais nas comunidades da periferia e os péssimos serviços públicos, em particular nas áreas do transporte de massas, da saúde e da educação, com reformas secundárias no jogo de poder que elas comandam e compartilham.

Com certeza, o povo está descontente, e muito, com o processo eleitoral brasileiro, tema quase exclusivo das propostas de reforma em debate. E com razão. Muitas das regras vigentes são mesmo uma afronta à democracia, como a permissividade nas doações feitas por empresários a candidatos, mediante uma singela contrapartida: o retorno, exponencialmente multiplicado, do investimento feito na campanha.

Mas o povo nas ruas mostra que quer muito mais e aos poucos o recado vai ficando claro. Imediatamente após as primeiras conquistas na redução do preço das passagens, os manifestantes passaram a exigir a abertura da caixa-preta das empresas de transporte e o mapeamento do nebuloso percurso que termina na definição da tarifa. E mais: rechaçaram o caminho das desonerações tributárias, que acabam por prejudicar o investimento em outras áreas sociais, reivindicaram que os custos saíssem dos lucros das empresas do setor e, sobretudo, transparência nos negócios públicos.

O Hino Nacional, efusivamente cantado nas manifestações, emite uma mensagem clara da população: cantamos pelo país que queremos e que sabemos que podemos construir, não pelo país que temos. E mais: manifestamo-nos não contra o partido A ou o partido B, que não nos parecem tão diferentes assim, mas contra as instituições do Estado – Executivo, Legislativo e mesmo Judiciário, em seus diversos níveis –, insensíveis às nossas aspirações. Mais ainda: queremos ser protagonistas de nossa própria história.

Enquanto cada passo das forças hegemônicas, presentes nos governos ou nas oposições conservadoras, é calculado tendo em vista seus interesses nas eleições de 2014, as demandas dos cidadãos dizem respeito a mudanças estruturais na ordem política, econômica e social do país.

As manifestações são, sabidamente, pouco orgânicas, sem lideranças claras e sem uma pauta unificadora coletivamente construída. Foram se tornando, dia após dia, o desaguadouro do descontentamento generalizado, não apenas da juventude, mas de toda a população. Mas isso não implica que não tenham um conteúdo intrínseco, quase explícito.

Trata-se, na verdade, de uma luta por um novo modelo de Estado, em que o povo se sinta senhor de seu próprio destino e definidor de suas prioridades, assumindo o poder que lhe foi usurpado, a despeito de o parágrafo único do art. 1º da Constituição afirmar que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente...”.

As diferentes concepções acerca do exercício do poder soberano têm suas origens na Antiguidade clássica, dividindo gregos e romanos. No processo de consolidação do Estado moderno, contudo, o debate adquire novos contornos, sendo protagonizado, no século 18, por Montesquieu e Rousseau. Resta analisarmos sua aplicação na contemporaneidade.

Não se trata, evidentemente, de contrapor a democracia direta da Grécia antiga – que, diga-se de passagem, era restritiva e elitista, excluindo escravos, estrangeiros e mulheres –, aos mecanismos de representação parlamentar que emergiram pós-revoluções burguesas do século 18 e que prevalecem em nossos dias. A questão que se coloca é de como assegurar a soberania popular nas decisões fundamentais da res publica. Afinal, apesar do grande temor da burguesia, nem mesmo a universalização do direito ao voto – em certa medida conquistada no século 19 e consolidada no século 20 – subtraiu-lhe o comando do Estado. Mesmo sendo fração minoritária da sociedade, a burguesia conseguiu transformar as eleições em instrumento de continuidade de seu domínio.

Construção coletiva Considerando que nosso modelo atual, no que tange ao exercício do poder popular, vincula-se às concepções de Montesquieu, e inferindo que o desejo dos manifestantes aproxima-os do modelo rousseauniano, vejamos, muito sinteticamente, algumas das teses centrais de ambos.

Para Montesquieu, “já que, num Estado livre, todo homem que supõe ter uma alma livre deve governar a si próprio, é necessário que o povo, em seu conjunto, possua o poder legislativo. Mas, como isso é impossível nos grandes Estados, e sendo sujeito a muitos inconvenientes nos pequenos, é preciso que o povo, através de seus representantes, faça tudo o que não pode fazer por si mesmo... Convém que, em cada localidade principal, os habitantes elejam entre si um representante. A grande vantagem dos representantes é que são capazes de discutir os negócios públicos. O povo não é, de modo algum, capaz disso, fato que constitui um dos graves inconvenientes da democracia” (Do espírito das leis).

Rousseau, por sua vez, considerava uma farsa a ideia de representação do povo soberano. Para ele, “a soberania não pode ser representada, pela mesma razão que não pode ser alienada; consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade geral não se representa: ou é a mesma, ou é outra – não existe meio-termo. Os deputados do povo não são, pois, nem podem ser os seus representantes; são simples comissários, e nada podem concluir definitivamente” (O contrato social).

Para o filósofo genebrino, contudo, o povo não apenas pode, mas deve ser representado no Poder Executivo, “que nada mais é que a força aplicada à lei”. “Os depositários do Poder Executivo não são os senhores do povo, mas seus oficiais, que ele pode nomear ou destituir quando lhe aprouver, que de modo algum lhes cabe contratar, mas obedecer, e que, incumbindo-se das funções que o Estado lhes impõe, nada mais fazem que cumprir com seu dever de cidadãos, sem ter, de forma alguma, o direito de discutir as condições”.

Como sustenta Carlos Nelson Coutinho, “desde Rousseau (...) a democracia é concebida como a construção coletiva do espaço público, como a plena participação consciente de todos na gestação e no controle da esfera política. É precisamente isso que Rousseau entende como ‘soberania popular’”.

A democracia representativa brasileira, aliada ao conteúdo imperial de nosso presidencialismo – que desmistifica a falácia da teoria da separação de poderes atribuída a Montesquieu –, nada tem a ver com a soberania popular advogada por Rousseau e, embrionariamente, inscrita em nossa Constituição, que a ela também faz referência no art. 14, que institui o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. Os processos eleitorais atuam, sobretudo, como instrumentos de legitimação do poder, controlados que são pelo poder econômico, pelos abusos do poder político e pelas distorções provocadas pelos meios de comunicação.

A complexidade do mundo contemporâneo, que incorpora, entre inúmeros elementos, o enorme contingente populacional das grandes cidades e as revolucionárias tecnologias de informação, não permite estabelecer uma contraposição absoluta entre democracia direta e democracia representativa. O que não se pode admitir, se se pretende assegurar a soberania popular nos processos de definição das prioridades do Estado, é a quase exclusividade dos mecanismos de representação, ainda mais considerando as graves distorções que eles apresentam, no Brasil e em todo o mundo.

É urgente, sim, realizar um amplo e profundo debate nacional sobre as correções necessárias no sistema político brasileiro, de forma a minimizar as suas aberrações, assegurar um efetivo controle social sobre os mecanismos de representação e, acima de tudo, fortalecer os mecanismos de democracia participativa presentes em nosso ordenamento institucional, multiplicá-los e criar instrumentos garantidores de sua eficácia. Um debate, contudo, que envolva os movimentos sociais, as entidades representativas da sociedade civil, o movimento sindical, os diversos agentes econômicos. Um debate que não seja feito a toque de caixa e que não signifique apenas a composição dos interesses das forças hegemônicas. Um debate que desemboque em um plebiscito, e não em um mero referendo protocolar. Um plebiscito que tenha as suas perguntas decididas e formuladas através de um vigoroso processo de mobilização e que garanta ao universo de seus protagonistas – e não apenas aos partidos institucionalizados – os canais necessários à defesa de suas ideias, especialmente o amplo acesso aos meios de comunicação de massa.

Esse debate seria, na verdade, o desdobramento das manifestações em curso e o início do amadurecimento de uma grande reflexão nacional sobre a afirmação da soberania popular. Com toda a certeza, serviria para jogar por terra a afirmação de Montesquieu segundo a qual o povo “não é capaz de discutir os negócios públicos”.

Eduardo Nunes Campos é jornalista, advogado e professor de direito.

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