Antologia organizada por Cleonice Berardinelli destaca a produção de sonetos na literatura portuguesa

Conjunto reúne 10 ensaios sobre poetas clássicos e modernos

por João Paulo 13/07/2013 00:13
Walter Craveiro/Divulgação
Durante a Flip, em Paraty, na semana passada, Cleonice Berardinelli levou ao público sua paixão pela poesia de Fernando Pessoa (foto: Walter Craveiro/Divulgação)
Aos 96 anos, Cleonice Berardinelli foi uma das sensações da recente Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, participando de leitura de poemas de Fernando Pessoa ao lado de Maria Bethânia, antes de conversar brevemente com o público. O que encantou as pessoas presentes, ao lado da vitalidade e elegância intelectual e humana da professora emérita da UFRJ, foi a capacidade de abertura para o novo. Ao estudar a poesia de Pessoa, da qual é uma das mais respeitadas especialistas no mundo, Cleonice Berardinelli fala para o leitor de hoje. A mensagem da poesia é além do tempo.

Talvez por isso não exista ninguém mais capacitado para organizar antologias de poesia portuguesa que Cleonice. É o que demonstram alguns de seus títulos mais recentes, Gil Vicente: autos e Fernando Pessoa – Antologia poética, ambos lançados pela Editora Casa da Palavra. Além da argúcia na seleção – tarefa muito difícil no âmbito da obra de gênios como Pessoa e Gil Vicente –, a professora incorpora aos livros estudos ao mesmo tempo profundos e extremamente legíveis, com a vocação pedagógica que sempre fez parte da carreira de Cleonice: o ensino não como erudição que fala para si, mas como abertura para o diálogo.

O mesmo método e qualidade estão presentes em Cinco séculos de sonetos portugueses de Camões a Fernando Pessoa, organizados, apresentados e seguidos de coletânea de 10 ensaios de Cleonice Berardinelli. Recém-lançado em bela edição, o livro propõe um passeio de 500 anos pela poesia portuguesa. Assim, atravessa os períodos clássico, barroco, neoclássico, romântico, realista, neorrealista e simbolista, chegando aos modernos. Em panorama tão amplo, decidiu a autora selecionar apenas exemplos da mais célebre das formas poéticas, o soneto, mesmo assim incluindo algumas variações formais do clássico soneto petrarquiano e shakespeariano. Cada autor ganha uma pequena introdução biográfica, que sintetiza a vida, características de estilo e contribuição à trajetória do soneto nas letras portuguesas.

Como toda seleção, pode haver discordâncias, o que mostra a riqueza do universo poético contido nos parâmetros do livro. No entanto, é possível ver na escolha da professora algumas das marcas de seu longo trajeto nas letras portuguesas: a sensibilidade ao cânone que não perde o olhar para as inovações e singularidades. Mesmo o leitor mais contumaz da poesia portuguesa vai encontrar aqui sonetos que lhe despertem o prazer da primeira leitura. Como sintetiza a própria Cleonice, uma antologia, desde a raiz da palavra, é uma colheita de flores que, mesmo partindo de poemas dispersos, acabam por ganhar uma forma em conjunto, dado por quem os escolhe e arranja. Não se pode pensar em florista mais sensível em matéria de poesia portuguesa.

A primeira parte, a antologia propriamente dita, está dividida em séculos e traz os seguintes sonetistas: século 16, Sá Miranda, Luís de Camões, António Ferreira, Diogo Bernardes, Frei Agostinho da Cruz e Francisco Rodrigues Lobo; século 17, Sóror Violante do Céu e D. Francisco Manuel de Melo; século 18, Marquesa de Alorna, Manuel Maria du Bocage e Almeida Garrett; século 19, João de Deus, Antero de Quental, Gomes Leal, Guerra Junqueiro, Cesário Verde, António Nobre, Camilo Pessanha, Teixeira de Pascoaes, António Patrício, Afonso Duarte, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Florbela Espanca; século 20, José Régio, Vitorino Nemésio, Miguel Torga, Jorge de Sena, Sophia de Mello Bryner Andresen, Carlos de Oliveira, José Saramago, Eugénio de Andrade e David Mourão-Ferreira.

Beleza e inteligência

A segunda seção do livro, que reúne os ensaios de Cleonice Berardinelli sobre a lírica portuguesa (não apenas sobre sonetos), é uma boa amostra do estilo da autora. Suas leituras são sempre ancoradas na história literária, com análises textuais profundas, que se nutrem do conhecimento filológico com abertura para a história das ideias e da teoria literária. É assim que o primeiro texto, “Esse amor que vos tenho limpo e puro”, trata do tema amoroso na lírica camoniana. A ensaísta compara a visão do poeta sobre o amor com antigos (Horácio) e contemporâneos de Camões (Ronsrad), para decifrar o pensamento e expressão do poeta sobre o amor, o engano e o desejo.

Nos ensaios que se seguem, a especialista demonstra seu domínio nos vários períodos da poesia portuguesa, com estudos sobre autores menos conhecidos do leitor brasileiro, como Diogo Bernardes (sobre os poemas de exílio), João de Deus (acerca da “simplicidade amorosa”), Teixeira Pascoaes (que trata do sentimento tipicamente português da saudade) e Afonso Duarte (em sua inspiração naturalista). Se no tratamento desses autores o sentido é mais de revelação, a erudição e profundidade nos estudos sobre poetas como Antero de Quental, Guerra Junqueiro e Fernando Pessoa são destaques nos demais textos do livro.

Sobre Antero de Quental, Cleonice Berardinelli vai às raízes de seu pensamento filosófico, com observações sobre a influência dos pensadores idealistas e da dialética. O estudo traz ainda à tona as motivações políticas do autor e apresenta uma leitura soberba do par de sonetos “Tese e antítese”. O trabalho sobre Guerra Junqueiro é, talvez, a melhor introdução disponível sobre a obra do escritor, tanto na análise do contexto literário (do grupo dos “Vencidos da vida”), como dos temas que habitam sua lírica, de sua voz poética e das características de estilo. Outro momento marcante do livro é o ensaio em que a autora compara as perspectivas políticas de Antero de Quental e Fernando Pessoa. Ao mesmo tempo que os distingue a filiação ideológica, os aproxima pela motivação filosófica quando tratam do tema inescapável da morte.

Num texto, que fecha o volume, quase uma crônica ou fragmento de memória, Cleonice fala de seu primeiro encontro com a poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen, ocorrido em 1966, na Universidade Católica do Rio de Janeiro. Depois de descrever a relação da escritora com os alunos, numa tarde encantada, Cleonice conta que pediu a Sophia que autografasse alguns de seus livros. E ganha, como dedicatória da escritora portuguesa, quase uma síntese de sua longa vida dedicada aos livros, às ideias e aos encontros mediados pela sensibilidade: “Para Cleonice, que procura tornar mais clara a cidade dos homens”. Ao que, sempre sábia e humilde, a professora comenta: “Talvez eu concorde com Sophia: ela, prudentemente, não disse que eu consigo tornar mais clara a cidade, mas que procuro fazê-lo. E isso é verdade”.

Que tenha escolhido como instrumento a literatura, sobretudo os poemas portugueses, é um mérito pessoal de Cleonice Berardinelli ao qual muitas gerações só têm que agradecer e celebrar.

CINCO SÉCULOS DE SONETOS PORTUGUESES

. De Cleonice Berardinelli
. Editora Casa da Palavra, 360 páginas, R$ 44,90

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