Futebol marca história da arte cinematográfica

O esporte mais popular do mundo, em sua dinâmica e beleza de movimentos, influenciou as imagens produzidas pelo cinejornalismo

por Geraldo Veloso 06/07/2013 07:00
Arquivo O Cruzeiro/EM
(foto: Arquivo O Cruzeiro/EM)
Quem assiste a uma transmissão esportiva nos dias de hoje não tem noção dos caminhos que o fenômeno audiovisual trilhou desde o aparecimento do registro de imagens em movimento, no final do século 19.

O aparato de cobertura esportiva, tanto nos jogos de futebol (ou o soccer, para os norte-americanos) como em quaisquer outras modalidades de competições, sobretudo as Olimpíadas, foi se transformando ao longo da evolução tecnológica que o registro audiovisual sofreu em mais de um século. A consequência das transformações tecnológicas certamente se refletiu no resultado formal que esses registros nos apresentam.

Leni Riefenstahl, nas Olimpíadas de Berlim, de 1936, chega a um delírio de utilização dos recursos de registro das atividades esportivas desenvolvidas no evento. Como tinha o prestígio de Joseph Goebbels, o homem das comunicações do Partido Nacional Socialista (nazista), teve a possibilidade de mobilização inédita de todo um aparato técnico para cobrir de forma inédita até então as atividades esportivas desenvolvidas no evento. E os alemães, logo depois dos desenvolvimentos que se sucederam à descoberta do cinematógrafo, se tornaram mestres da ótica (as lentes Zeiss, Schneider) e da mecânica (as câmeras Arriflex, desenvolvidas por geniais desenhistas, que criaram equipamentos portáteis, modernos – incluíam a tecnologia de monitoramento do registro reflex – em equipamentos fáceis de alimentar de negativos, com manutenção acessível a qualquer operador menos sofisticado e com motores de alimentação elétrica por baterias portáteis). Até então as câmeras mais sofisticadas (em termos de ótica e de operação mecânica) eram monstros operados em estúdios, por gruas, dollies (aparatos apropriados para a sua mobilidade) e movidas por motores ligados à corrente elétrica convencional. Ou, nos casos de cobertura de fatos jornalísticos (ou esportivos), os aparatos de registro eram movidos por corda, com limite de registro determinado pela sua duração (nunca maior que 40 segundos por tomada de imagem).

Os alemães usaram e abusaram de sua sofisticação tecnológica e filmaram sua aventura bélica plena e exuberantemente. O fim da guerra nos trouxe a herança de suas câmeras para o cinema, que passou a ser realizado a partir de então: nas ruas, pobre de recursos e ágil na sua operação de registro. A conjugação dos processos de registro com as técnicas de dublagem, sobretudo desenvolvidas na Europa (inclusive por imposição de lei, durante o fascismo italiano), liberou o cinema dos estúdios e deu-lhe, como foi dito, uma possibilidade do encontro com a realidade pura. Mas havia a contradição: filmava-se a realidade (sem filtros, sem iluminação pesada e artificial, com negativos cada dia mais sensíveis) e adiava-se a colocação dos diálogos para uma operação de pós-filmagem, realizada em estúdios (menos complexos, mas distintos do processo realista, não simultâneo, de registro das imagens).

Logo surgiram novos desenhos de câmeras por franceses e outros especialistas. Os franceses nos trouxeram a sofisticação alemã conjugando-a com novos conceitos tecnológicos: as câmeras Éclair – estúdios, laboratórios de processamento e construtores de equipamentos, de origem logo no início da gênese da indústria cinematográfica francesa –, desenhadas pelo M. Coutant, trouxeram novas perspectivas para o registro da realidade e, consequentemente, para a linguagem cinematográfica.

O esporte, sobretudo o futebol, com a retomada dos grandes torneios no pós-guerra (a Copa do Mundo de 1950, realizada no Brasil, nos traz de volta o torneio interrompido às vésperas da Segunda Guerra Mundial, em 1938) vai pontuar o desenvolvimento das coberturas do esporte.

Os newsreels (jornais de atualidade, complementos para os programas de cinema) nos trazem, quase obrigatoriamente, um set para um esporte – os de origem nos EUA nos traziam o basquete, os europeus; o futebol. No Brasil, tínhamos alguns cinejornais clássicos, primeiro os produzidos pela Atlântida, depois os do Herbert Richers – os “do sino” – e, posteriormente, os do Carlinhos Niemeyer, o Canal 100.

O ponto de vista da câmera era quase uniforme: um plano geral nos dava a visão do jogo, em conjunto, editado pelos momentos mais significativos (geralmente os gols). As lentes eram limitadas e a utilização de teleobjetivas era muito pequena, pois os dispositivos óticos eram, por sua vez, tímidos em termos de poder de aproximação da imagem.

Novos recursos

No início dos anos 1960, um documentarista etnográfico sueco, Arne Sucksdorf, chega ao Brasil para aplicação de um curso de cinema com o patrocínio da Unesco, promovido por uma parceria entre o Departamento Cultural do Itamaraty e o Serviço de Patrimônio Histórico brasileiro. Sucksdorf traz consigo um upgrade tecnológico para o parque de produção de cinema do país: uma câmera Arriflex (geração II B) e um jogo de lentes ainda inédito no país (uma lente grande angular 18,5mm e uma teleobjetiva 400mm, poderosa), entre outros equipamentos de ponta, como um gravador Nagra III, de alto rendimento no registro do som ao natural no set de filmagem, que foram incorporados à produção nascente do Cinema Novo.

Joaquim Pedro de Andrade veio de uma temporada europeia, informado de todos os recursos técnicos que começavam a surgir e que davam uma guinada à escola cinematográfica documental, criando uma nova era para a estética do cinema, levando as descobertas do neorrealismo italiano a um ponto de rompimento com barreiras técnicas que o limitavam. Utiliza o equipamento que Sucksdorf nos tinha apresentado e roda o seu primeiro filme de longa metragem, Garrincha, alegria do povo. E, com os recursos que o equipamento lhe propiciava, inova as tomadas de cobertura de um jogo de futebol. Obrigado pela necessidade de acentuar uma das características físicas de Garrincha (suas pernas tortas), coloca a câmera no nível do campo e, com a poderosa lente 400mm, passa a se aproximar do jogo como nunca havia acontecido anteriormente. E, por tabela, incorpora o documento das emoções do jogo, filtradas pelo olhar perscrutador dirigido aos espectadores no estádio. Não passa muito tempo e o cinejornal que melhor cobriu os esportes naquele momento, o Canal 100, incorpora aquela linguagem à rotina de cobertura.

Nesse momento, os franceses (Morin, Rouch, Reichenbach), aliados aos americanos (Leacock, Drew, Pennebaker e os irmãos Maisles) e aos canadenses (Brault, Lefèbvre, Perrault e outros), começam a induzir as guinadas tecnológicas que se seguem. As câmeras, com desenho sofisticado, se silenciam (motores sussurrantes) e se aliam ao “milagre” proposto pelo engenheiro grego Stefan Kudelski: a geração de gravadores Nagra. Ali começa a revolução do cinema direto, sonho dos realistas, documentaristas e etnógrafos – e, certamente, repórteres jornalísticos e esportivos.

Quem assiste hoje às mirabolantes façanhas originadas das centenas de câmeras, com objetivas as mais poderosas, gruas conjugadas a mesas de efeitos que reproduzem (replays) no ato lances do jogo, não pode imaginar o significado da crônica que é descrita aqui.

O cinema transformou-se tecnologicamente e, por consequência, em sua riqueza de linguagem em paralelo ao processo de crescimento do esporte como fenômeno universal. As transmissões via satélite, no fim dos anos 1960, que nos dão imagens do mundo inteiro, no momento em que ocorrem, deram ao futebol aquela certeza: ninguém é mais “bobo”. Todo mundo sabe do repertório técnico do futebol: os overlappings, o drible da vaca, o chute de trivela, as chaleiras, os lençóis, antes só disponíveis para os “inventores” do gênero – cujo representante mais ilustre é o nosso Pelé. O futebol não tem mais mistérios. O cinema proporcionou essa democratização. Hoje os mistérios estão em outros dispositivos utilizados pelos técnicos do ramo.

. Geraldo Veloso é cineasta e pesquisador.

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