Mudanças culturais são necessárias para melhorar a relação do homem com a água

Para enfrentar a hidroalienação e suas consequências catastróficas para o meio ambiente, é preciso investir em mudanças culturais e políticas responsáveis que levem à hidroalfabetização da população das cidades

por Estado de Minas 15/06/2013 00:13
Bruno Kelly/Reuters
O Rio Amazonas toma conta de cidades e vilarejos à sua margem: relação entre os homens e as águas precisa buscar o caminho do conhecimento e da harmonia (foto: Bruno Kelly/Reuters)
Maurício Andrés Ribeiro*

Uma mãe instrui a criança: “Meu filho, não jogue o lixo no quintal, porque aí não é o rio”. Em pleno século 21, os rios ainda são usados para afastar o lixo e o esgoto e as cidades voltam as costas para eles. Enquanto existirem mães que educam seus filhos com esses valores – e certamente existem milhares delas –, estará sendo reproduzida uma atitude de agressão para com a água. Nas pequenas ou grandes cidades, o rio ainda é o lugar onde se despeja o esgoto sem tratamento. É lá que se joga o lixo que a água leva embora e que polui as captações de água de cidades que se estendem ao longo de rio; ou que, nas enchentes, entope os bueiros e bocas de lobo e provoca grandes prejuízos econômicos.

Os cidadãos urbanos vivenciam fragmentos limitados do ciclo da água. Desconhecem o caminho que ela percorre até chegar à torneira e ignoram para onde ela vai quando desaparece no ralo. Pistas de rolamento para o tráfego de veículos cobrem vários rios, córregos, ribeirões urbanos. Avenidas sanitárias escondem e tornam invisíveis os rios das cidades. Nas enchentes, eventos críticos cada vez mais frequentes, os cidadãos urbanos têm um contato dramático com as águas, que causam prejuízos econômicos e mortes nos fundos de vales, quando os rios extravasam os caixotes em que foram confinados.

Os cidadãos urbanos desconhecem o ciclo da água, que se condensa nas nuvens, precipita, escorre superficialmente ou se infiltra no solo. Diferentemente de povos indígenas ou agricultores ou pescadores, que têm uma noção mais integral desse ciclo, por dependerem dele para sua sobrevivência, o cidadão urbano tornou-se hidroalienado. A hidroalienação é a falta de consciência sobre como funciona o ciclo da água e a falta de conhecimento sobre como ele é alterado pela ação humana.

Desconhecem também que a água circula dentro dos corpos dos animais e seres humanos, bem como dos vegetais, que a devolvem à atmosfera na evapotranspiração.

Os cidadãos urbanos não têm consciência das relações entre o ciclo do carbono e o ciclo da água e o fato de que, ao interferir no ciclo do carbono e aumentar a emissão de gases de efeito estufa para a atmosfera, o ser humano provoca uma resposta no ciclo da água, sensível a variações de temperatura. Tampouco têm consciência da presença da água no cosmos, da presença da água no clima, de sua sensibilidade às variações de temperatura. E muito menos ainda de seus aspectos sutis, como condutora de informação – qualidade usada na terapêutica e na homeopatia, por exemplo. De sua influência nos pensamentos e nos sentimentos, e de linhas de pesquisa e de experimentação de ponta.

A relação com a água precisa tornar-se amigável. As cidades precisam voltar-se de frente para os rios e para a água.

Para desenvolver uma relação harmônica do cidadão com a água, um primeiro passo é hidroalfabetizá-lo, dar-lhe o bê-á-bá da água. Hidroalfabetizar é promover a aprendizagem sobre a água, sua importância para a vida e como relacionar-se com ela de forma amigável; é proporcionar as noções básicas sobre o ciclo da água e sobre como a atividade humana o altera, no âmbito local ou global.

Fritjof Capra criou na Califórnia um Centro para a Alfabetização Ecológica, ou seja, para entender como os ecossistemas sustentam a rede da vida, entender os princípios da ecologia, integrar conceitos por meio do pensamento ecológico, aprender no mundo real, criar comunidades de aprendizado, integrar a cultura da escola e o currículo. A partir daí podem-se conceber e implantar comunidades humanas sustentáveis.

Progressivamente pode-se promover a consciência hídrica, as noções sobre o ciclo da água, a presença da água no ambiente, nos corpos vivos, as manifestações culturais que a envolvem, a história do seu uso.

O grande desafio para implementar a política de águas é comportamental e cultural: transformar uma relação agressiva em uma postura amigável para com a água. Dessa questão derivam os demais desafios gerenciais, administrativos e políticos.

A hidroalfabetização para a gestão da água inclui conhecer processos participativos e instrumentos de ação, bem como o que é feito para conservá-la e dar-lhe uso sustentável. Na educação a partir do bolso, pode-se incentivar, inclusive com estímulos econômicos, que ele se interesse pela produção da água. Por meio da cobrança pelo uso da água pode-se induzir a redução dos desperdícios. É relevante conhecer os instrumentos de ação disponíveis na política ambiental e na política das águas – o licenciamento ambiental, os planos de recursos hídricos, o enquadramento de corpos d’água, a outorga, os sistemas de informação e saber como utilizá-los com perícia, de forma articulada e integrada.

Um grande desafio é, portanto, promover a hidroconsciência dos cidadãos e da sociedade. Existem várias formas de fazê-lo, por meio da hidroalfabetização, de sinais econômicos emitidos pelo sistema de preços e da implementação da gestão participativa e descentralizada das águas.

Sabedoria cultural

Em situações de carência e escassez torna-se imperiosa a conservação da água. Boas práticas muitas vezes derivam de benéficos conceitos e ideias, da aplicação de conhecimentos científicos e tecnológicos, bem como da sabedoria culturalmente acumulada. Empresas, organizações sociais, indivíduos, governos locais têm-se empenhado em realizar boas práticas.

A comunicação é fundamental para a mudança cultural e para reduzir a hidroalienação. Nesse sentido, bons serviços são prestados por programas de televisão produzidos por jornalistas ecologicamente conscientes, que divulgam soluções urbanas e rurais e contribuem para disseminá-las. Na internet muitos sites divulgam boas práticas de gestão da água. Em alguns condomínios em Brasília sujeitos à escassez hídrica, os condôminos financiam pesquisas tecnológicas voltadas para o reuso e a conservação da água, o reaproveitamento de água de chuva, a recarga de aquíferos, conservação do solo e da cobertura vegetal. Estímulos e reconhecimento a essas boas práticas têm sido dados pelos prêmios oferecidos àqueles que as desenvolvem.

A hidroalfabetização é um passo para tornar o cidadão hidroconsciente e para que suas atitudes para com a água sejam de respeito e de cuidado. Também as empresas, organizações e os vários setores do governo precisam ser hidratados e tornar-se hidroconscientes.

A hidroconsciência é a compreensão de como a água está presente no universo e no planeta, como funciona o ciclo da água, a importância das bacias hidrográficas, os impactos negativos ou positivos que as atividades humanas provocam sobre ela. É um requisito para desenvolver atitudes amigáveis no relacionamento com a água.

* Maurício Andrés Ribeiro é autor dos livros Ecologizar, Tesouros da Índia e Ecologizando a cidade e o planeta.

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