Cartas trocadas entre Fernando Pessoa e a namorada ganham edição completa no Brasil

Manuscritos do poeta e de Ofélia Queiroz foram arrematados num leilão em Londres

por João Paulo 15/06/2013 00:13
Fotos: Capivara/Reprodução
Em um poema assinado por Alberto Caeiro, o poeta dizia que as únicas informações públicas relevantes sobre sua vida eram as datas de nascimento e morte, fora delas, tudo pertencia a ele (foto: Fotos: Capivara/Reprodução)
De Fernando Pessoa (1888-1935), quase todos sabem poucas coisas: que foi o maior poeta da língua portuguesa desde Camões, que assinava com diversos pseudônimos (no caso dele, heterônimos), que teve vida discreta, trabalhou em escritórios comerciais, teve seus namoros com as ciências ocultas, morreu solteiro e deixou milhares de páginas de inéditos em um baú. Em um poema assinado por Alberto Caeiro, o poeta dizia que as únicas informações públicas relevantes sobre sua vida eram as datas de nascimento e morte, fora delas, tudo pertencia a ele. A posteridade não cumpriu o desejo de Caeiro.

Juntamente com a obra, que foi se revelando aos poucos, uma curiosidade crescente acerca da vida do poeta e da interpretação de seus escritos foi se avolumando em todo o mundo. Fernando Pessoa é hoje um dos mais estudados poetas do seu tempo, o interesse internacional por sua vida é crescente e a cada ano são publicadas biografias e trabalhos de crítica literária que buscam se aproximar dele por diferentes vias.

O livro Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz – Correspondência amorosa completa 1919-1935, organizado pelo americano Richard Zenith, que acaba de ser lançado no Brasil pela Editora Capivara, é um passo importante na decifração do enigma Pessoa. Ou, quem sabe, uma contribuição para torná-lo ainda mais profundo e desafiador. Em belíssima edição, o volume, com mais de 500 páginas em grande formato, reúne pela primeira vez a correspondência completa entre Fernando Pessoa e sua única namorada, Ofélia Queiroz (1900-1986).

As cartas entre os dois já haviam sido publicadas em parte em outras edições, mas longe de alcançar a dimensão integral. A reunião completa de toda a correspondência só foi possível pelo empenho de Bia e Pedro Corrêa do Lago, que arremataram um grande lote de manuscritos num leilão em Londres, em 2002. A partir daí, foram em busca de outras cartas, telegramas e cartões-postais. O volume final chega a 348 documentos, sendo que destes 156 são inéditos.

O fato de a coleção pertencer a brasileiros se explica pela paixão natural pelo poeta e pela língua. Mais que isso, trata-se de um patrimônio universal. Com o material em mãos, Pedro e Bia organizaram uma edição completa, cuidadosa e bonita, com transcrição de todos os manuscritos, fac-símile dos originais e organização a cargo de Richard Zenith, um pesquisador norte-americano que migrou para Portugal em 1987 e vem estudando e traduzindo Fernando Pessoa (e alguns poetas brasileiros) desde então. É dele a melhor edição d’ O livro do desassossego. O livro traz ainda ensaio de Eduardo Lourenço sobre a presença do amor na obra de Fernando Pessoa; um relato de Ofélia Queiroz, de 1978, em que relembra seu namoro com Pessoa; introdução de Bia e Pedro Corrêa do Lago; e apresentação de Richard Zenith.

As cartas são divididas em quatro blocos: “Cartas amorosas 1919-1920”, “Cartas frustradas 1929”, “Cartas solitárias 1930-1931” e “Epílogo 1932-1935”. O último grupo, apesar de ser o mais longo no tempo, é o mais curto, com apenas seis pequenos bilhetes que não ocupam uma página completa e se ocupam de mensagens protocolares. O mais interessante está contido no primeiro conjunto, quando exatamente surge a paixão e as expectativas de Fernando e Ofélia. Fernando Pessoa, pela boca de Álvaro de Campos, ainda não havia escrito que “todas as cartas de amor são ridículas”. Neste momento, em 1919, aos 31 anos, o poeta se revela docemente ridículo e apaixonado.

As circunstâncias do encontro entre Fernando e Ofélia são conhecidas. Filha caçula de uma família amorosa da pequena burguesia lisboeta, ela se apresenta à firma Félix, Valadas e Freitas Ltda., que havia posto anúncio no jornal em busca de secretária. Ela sabia datilografia, falava francês e conhecia um pouco de inglês. Com 19 anos, alegre e independente, consegue o emprego. Fernando Pessoa, então com 31 anos, se encanta com a moça. Ofélia não sabe sequer se o poeta é empregado da firma ou apenas colabora com o primo, um dos sócios, cuidando da correspondência em inglês e francês. Mas logo percebe que se trata de um intelectual cortejado por um pequeno círculo, que não se cansa de estimulá-lo a publicar. Ao que Pessoa respondia: “Deixem estar, que, quando eu morrer, ficam cá caixotes cheios”. Desses caixotes, brotaram as cartas de amor.

Unilateral

O namoro, na verdade, pelo que se lê nas cartas, foi quase unilateral. Na verdade, Ofélia namorava Fernando e nutria o desejo de se casar com ele, chegando a assinar uma carta como “Ofélia ‘Pessoa’ (quem me dera)”. Fernando Pessoa, embora carinhoso, chega a pedir a ela que não diga que estão namorando, usando como subterfúgio a defesa de que se amam e que namorar era pouco: “Nunca digas a ninguém que nos ‘namoramos’. É ridículo. Amamo-nos” . Pede a Ofélia que não torne público o relacionamento, nem quer ser apresentado à família: “Sabes, é preciso compreender que isso é de gente vulgar. E eu não sou vulgar”.

A relação entre os dois, no entanto, é carinhosa, com muitos beijos (ou “jinhos” como preferem dizer) e carícias confessadas. Armam encontros secretos, com Pessoa chegando a desenhar um mapa para que ela pudesse encontrá-lo. O poeta é carinhoso, oferece mimos, escreve poemas em meio às cartas e, por várias vezes, a arrebata em beijos ardentes durante os passeios. No entanto, não se sabe se chegaram a ter relações sexuais completas. Para alguns biógrafos, Fernando Pessoa morreu virgem. A sexualidade do poeta e suas preferências sempre foram motivos de discussão e as cartas não são suficientes para provar ou desmentir as versões existentes.

Há algumas características que tornam a correspondência docemente banal, como a de qualquer casal daquele tempo: uma certa infantilização, os apelidos íntimos (ele a chamava de Bebé e era tratado por ela como Nininho), os ciúmes, as dúvidas (para Fernando Pessoa era impossível aceitar que uma moça mais nova e interessante pudesse se apaixonar por ele), os códigos pessoais (como referir-se a ir às Índias como proposta erótica, em razão do Kama sutra). Mas, como se trata de Fernando Pessoa, o espaço para a singeleza era dividido pela complexidade de sua constituição pessoal e de sua alma atormentada e múltipla. Assim, logo entram em cena “outros” Fernandos.

Além de Fernando Pessoa ele mesmo, Ofélia teve que dar conta de pelo menos dois heterônimos, aos quais chegou a dirigir-se em cartas, A. A. Crosse e Álvaro de Campos. É claro que as excentricidades de Campos causavam mais problemas. Ele era quase um rival de Ofélia na vida de Pessoa. Dava palpites, escrevia maluquices, zombava do relacionamento dos dois. Ofélia, que também mostrou sua sensibilidade literária para enfrentar o concorrente, o levava a sério e escreveu: “Detesto Álvaro de Campos, só gosto de Fernando Pessoa”.

Passado o primeiro ano, em que se pode falar propriamente de namoro, embora a própria Ofélia, em seu depoimento, prefira sempre grafar “namoro”, entre aspas, os dois se distanciam, aparentemente sem motivo, e só voltam a se reencontrar nove anos depois. Ofélia ainda tenta uma reaproximação. Já não trabalha e mora com a irmã. Pessoa está mais distante, não fala mais em ir às Índias, está envelhecido e bebe de forma quase profissional. Será exatamente por causa da bebida que eles vão se reencontrar. Ofélia vê com o sobrinho uma fotografia de Fernando a beber vinho no Abel Pereira de Oliveira e manifesta o desejo de ter uma para si. Alguns dias depois, Fernando envia a ela uma cópia com a dedicatória: “Fernando Pessoa em flagrante delito”. Ela escreve para agradecer e retomam a correspondência, que para Ofélia marca a retomada do namoro.

Há um dado numérico que é expressivo sobre a diferença de expectativa entre os dois. Enquanto Ofélia escreveu 289 peças, entre longas cartas, bilhetes de cartões-postais ao seu Nininho, recebeu em troca apenas 59 do poeta, quase sempre mais curtas, embora muitas delas derramadas e confessionais, manifestando carinho por sua Ofelinha, Bebé, Bebé-anjinho, Bebé pequenino. A partir de 1930, o esforço é todo de Ofélia, mas é já a quadra das cartas solitárias, em que ela confessa o amor e saudades, pede encontros, oferece memórias de alegria e compartilhamento. E não recebe nada em troca. A história de amor se acabou. Ofélia perdia Fernando para Álvaro de Campos e Ricardo Reis (que chegou a telefonar para ela uma vez, em 1931, informando que “Fernando Pessoa estava incomunicável”). Fernandinho não estava mais lá. Fernando, 29/XI/1920.”

“Querido Nininho, Não imagina como tenho estado preocupada com o meu lindo amor! Estou desejosa do dia de amanhã para saber se o meu pretinho está melhorzinho, e como passou o resto do dia de hoje. Vê Nininho, que hei de eu estar sempre inquieta e desejosa de viver em sua companhia?! (…) Bebé, 11/VII/1930.”

Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz – Correspondência amorosa completa 1919-1935

. Organização da Richard Zenith
. Editora Capivara, 552 páginas, R$ 140

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