Soluções para o centro de BH devem valorizar áreas públicas

Soluções para região central de Belo Horizonte devem deixar de lado as estratégias pensadas de forma desarticulada e valorizar a utilização das áreas públicas para a construção de uma cidade para todos

por Flávia Ayer 01/06/2013 00:13
Paulo Filgueiras/EM/D.A Press
Galpões da Funarte com a Casa do Conde de Santa Marinha ao fundo: intervenções na região devem preservar vocação do território (foto: Paulo Filgueiras/EM/D.A Press)
Flavio de Lemos Carsalade*


As grandes cidades se tornaram a opção de morar do homem contemporâneo. Se no Brasil cerca de 80% de sua população vive em cidades, a maior parte dessas pessoas habitam as metrópoles e os centros urbanos de grandes populações e densidades. As cidades se tornaram o local da vida, das trocas e das disputas, é nelas que os efeitos globais encontram sua materialidade e é nelas que procuramos encontrar nossa felicidade e construir nossa vida. Várias são as faces que se expõem às nossas reflexões e considerações e sobre elas se debruçam um sem-número de agentes, sejam pensadores, empresários, políticos, movimentos sociais ou uma gama enorme de outros segmentos. Neste artigo queremos destacar dois desses aspectos: a cidade como um sistema integrado de peças interdependentes e a cidade como o espaço da interação cidadã, os quais remetem para a importância do uso e apropriação dos espaços públicos. Para ilustrar e tornar mais concreto o nosso pensamento, vamos ilustrar com um caso muito conhecido dos belo-horizontinos, o trecho do Vale do Ribeirão Arrudas, entre a região da Lagoinha e a Câmara Municipal.

O primeiro eixo de reflexão que propusemos trabalha a cidade como um fenômeno complexo com fatores profundamente interdependentes, o que equivale dizer, dentro de um pensamento sistêmico, que, ao se mover uma peça, esse movimento provoca reflexos em vários outros. Por exemplo, a violência urbana é maior quando se segrega o espaço urbano e se opta por regiões monofuncionais; ao se implantar um grande equipamento urbano, digamos, um centro administrativo, modifica-se todo o quadro de valores imobiliários da vizinhança; ao se aumentar o potencial construtivo de uma determinada área, aumenta-se ali a necessidade de acessibilidade; ao se aumentar a largura das vias para atender ao crescente aumento de veículos particulares, estimula-se a presença cada vez maior de automóveis; ao se aumentar os custos de transporte coletivo, reduz-se a mobilidade urbana e, reduzindo a mobilidade urbana, reduz-se a integração da cidade e o direito ao seu uso. Neste aspecto, vale dizer que ao optarmos por determinada intervenção urbana estaremos congelando várias outras possibilidades e gerando uma série de reflexos colaterais que precisam ser pesados nas nossas decisões urbanísticas. Essa compreensão nos leva a duas conclusões importantes. Primeiro, não há como pensar uma cidade lote a lote, parcela por parcela, como se fossem elementos isolados e, como consequência desta primeira conclusão, a necessidade de uma atenção especial sobre os lugares urbanos onde há ainda espaço e condições para um pensamento largo e ações amplas e de grande repercussão urbanística.

O segundo eixo de reflexão se refere à importância dos espaços públicos, as ruas, as praças, os parques. Assistimos, ao longo do século 20, uma crescente funcionalização das cidades, onde as vias públicas se tornaram verdadeiros canais de escoamento de veículos, negligenciando seu papel histórico de lugar de passagem de pedestres e de encontro, de trocas entre os cidadãos. Nessa altura de nosso raciocínio é importante lembrar que a opção por se morar em cidades não é uma opção de solidão, mas uma escolha por uma vida gregária e que busca tirar proveito das oportunidades e atrações que essa modalidade oferece. Assim, o uso dos espaços públicos pressupõe muito mais que apenas circular ou ir de um lugar para outro, mas, antes, enseja as infinitas relações que esses encontros podem propiciar, sejam eles o lazer, o comércio, a manifestação, a fruição pessoal, tudo aquilo que genericamente chamamos de urbanidade.

Os espaços públicos, atualmente, não são mais pensados apenas na sua vertente funcional, mas estão sendo alvo de cuidados nas grandes cidades do mundo, que veem neles a verdadeira expressão da opção de um morar urbano. Qualificar esses espaços, abrir as possibilidades de seu uso, não privilegiar o automóvel, mas o cidadão, torná-los saudáveis e atrativos têm sido as estratégias que se espalham pelas metrópoles em todo o globo, pois se sabe que essas estratégias estimulam a cidadania, diminuem a violência urbana e criam maiores laços e identidades com seus habitantes, na acepção maior da palavra habitar. Dentro desse aspecto, vale dizer que devemos ter especial atenção aos lugares públicos de grande significado urbano e cuidar para que eles sejam efetivamente apropriados com qualidade. Essa qualidade melhor e mais efetivamente se exerce em trechos urbanos amplos e com grande potencial de articulação urbana.

É por esses aspectos que o trecho do Vale do Arrudas entre a rodoviária e a Câmara dos Vereadores exemplifica bem o nosso argumento. Há mais de 20 anos venho trabalhando sobre esse trecho urbano, não só chamando a atenção para seu potencial, mas também tentando criar mecanismos legais e outras ações que possam lhe conferir a importância que apresenta para a cidade. Na maioria das cidades, em todo o mundo, as áreas lindeiras a rios e vias férreas – as quais normalmente coincidem, pois o trem aproveita bem as extensões planas dos rios – são trechos estratégicos de renovação urbana e, portanto, devem ser sempre pensados de forma abrangente, em seu potencial de porção territorial agregada que se perde a cada vez que se “retalha” em pequenos lotes ou é ocupado por pequenos empreendimentos ou edifícios que rompem a sua continuidade.

Desde há muitos anos vimos lutando para a conservação dessa integridade e quando a Rede Ferroviária Federal (RFFSA), dona de quase todos os lotes entre a Avenida do Contorno e a linha férrea, no trecho adjacente à Casa do Conde, estava buscando vender seus lotes para quitar dívidas trabalhistas, fizemos ações junto a ela para que se buscasse uma venda qualificada, sempre unindo todos os lotes para que não se rompesse a continuidade urbana e que essa venda “casada” resultasse em um benefício para cidade. À época, início dos anos 2000, a RFFSA foi sensível ao nosso pleito e a também a Câmara Municipal de Belo Horizonte, que instituiu uma operação urbana consorciada, agregando lotes e ruas e apontando diretrizes de continuidade urbana nos sentidos leste-oeste (ao longo do rio, em um parque linear que ligasse rodoviária à Praça da Estação e, em continuidade à Câmara dos Deputados em amplo bulevar de pedestres) e norte-sul (fazendo a costura, para pedestres, do tecido urbano entre centro da cidade e bairro Floresta/Colégio Batista).

Essas propostas derivaram de um momento de especial reflexão para a cidade que foi o concurso de ideias BH-Centro, de 1989, e no qual fomos premiados com a ideia do Parque Linear do Vale do Arrudas. A íntegra da ideia consistia em se colocar uma grande laje sobre o metrô no trecho entre a Estação Lagoinha do metrô e o Viaduto da Floresta, criando um grande parque linear em dois níveis, o do Colégio Batista (por sobre a nova laje acima do metrô) e o da Avenida do Contorno, com a desocupação total dos edifícios aí existentes, quase todos pertencentes à própria RFFSA e atualmente, com a sua extinção, de propriedade do patrimônio da União, ou seja, são terrenos de propriedade pública. Hoje já há alguns outros prédios particulares no local, mas mesmo assim, a ideia é ainda possível e interessante para a cidade, posto que a quantidade de lotes públicos chega a quase 90% da gleba.

Cidade possível Para que tenhamos uma ideia do cenário possível para a área, façamos um esforço de imaginação sobre seu potencial e possibilidades desde a região da rodoviária até a Câmara dos Vereadores.

Na região da rodoviária há, desde há muito tempo, uma ideia de se unir os pavimentos de embarque da estação rodoviária (futura estação de ônibus urbanos) e o da estação de metrô da Lagoinha com uma grande laje por cima da Avenida do Contorno. Isto criaria um percurso urbano de pedestres de grande riqueza para a cidade, livre de cruzamentos com automóveis e ônibus e de grande qualidade urbana. A estação de metrô se integra facilmente com áreas livres hoje cercadas junto à via férrea e, com a tal laje sobre o metrô, criaria um percurso também de pedestres, alternativo, até a área da Casa do Conde de Santa Marinha.

Esta área vem sendo requalificada desde que, no ano 2000, o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG), sob nossa direção, facilitou a instalação ali da Casa Cor, com o objetivo estratégico de que o evento revelasse a área para o grande público. Desde então, a presença qualificadora do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e da Fundação Nacional de Artes (Funarte) tem lutado para que ali se instale um polo artístico-cultural na cidade, o que, com rara felicidade, vem ocorrendo. A última proposta em andamento desses dois órgãos federais é a criação de um teatro que se abre para a grande área urbana livre sob o Viaduto da Floresta, esta com grande potencial de integração à Praça da Estação e à Rua Sapucaí.

Por sua vez, essa área se conecta com vários outros espaços urbanos livres de propriedade da Prefeitura de Belo Horizonte ou da RFFSA (hoje sob a tutela do Museu de Artes e Ofícios), áreas essas que se estendem a grandes espaços públicos como a própria Rua Sapucaí (grande “varanda" para bela vista da cidade de Belo Horizonte) ou a própria Praça da Estação. Da praça, continua sendo possível ir-se a pé até a Serraria Souza Pinto e, daí, por meio da grande largura das vias públicas aí existentes, alcançar-se, pelas amplas calçadas, o edifício da Câmara Municipal, resgatando, dessa forma, sua necessária proximidade e reatividade com a vida da cidade, da qual se exilou ao sair da região central e ocupar uma área fora do burburinho urbano, onde a casa dos representantes do povo deve estar. Configurando-se como uma grande extensão plana e linear, o trecho também é perfeito para a instalação de ciclovias, opção importante de mobilidade para as cidades contemporâneas.

Ao descrevermos tantas possibilidades urbanísticas do trecho, estamos mostrando uma outra cidade possível, apropriada pelos pedestres e pela população. Estamos falando do resgate dos espaços públicos, fundamental para a vida urbana de qualidade. É importante que a cidade conheça essas ideias e participe dos debates sobre o uso futuro desses espaços. Só assim nos afastaremos das ameaças que a todo o momento surgem sobre a ocupação parcelada e desintegrada dessas últimas reservas estratégicas de espaços urbanos na região central. Só para se ter uma ideia, no grande terreno vazio de propriedade da prefeitura, ao lado da Praça da Estação e em frente ao edifício do Museu de Artes e Ofícios, várias ameaças vêm surgindo. Já quiseram colocar ali um Museu de Arte, um Centro de Convenções e agora um questionável Centro de Referência da Juventude, dentre outras destinações menores.

Sobre este último é importante refletir sobre as consequências de sua implantação como está projetado e que são várias. O projeto segue a linha de ocupação lote a lote, desconsiderando a articulação urbana ao se fechar sobre si mesmo, “entupindo” a ampla fluidez dos espaços urbanos desejável para o trecho e, por sua característica de ser pensado isoladamente, impossibilitando o planejamento urbano maior que pode ser mostrado pela simples reflexão de que, se quisermos duplicar o Viaduto da Floresta para dar continuidade a Avenida do Contorno, ali seria o local indicado para isso. Ou seja, ou bem se constrói o Centro ou bem se duplica o viaduto ou, ainda melhor, se pense tudo isso de forma conjunta e articulada.

Em tempos de debates sobre o futuro da cidade, quando se discute o projeto do Corredor Cultural Estação das Artes e grandes intervenções de mobilidade urbana, precisamos aprender a pensar grande e generosamente, fora da escala mesquinha do lote isolado de seu contexto e da ocupação fechada e desintegradora que se dá quando pensamos no lote a lote. Espaços públicos e planos locais de amplo espectro são necessários para uma cidade efetivamente cidadã. Não podemos nos dar ao luxo de desprezar as nossas últimas reservas estratégicas.

* Flavio de Lemos Carsalade é arquiteto, urbanista e professor da UFMG.

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