Para acelerar o passo

por 25/05/2013 00:13
Luciano Stockler/Divulgação
Luciano Stockler/Divulgação (foto: Luciano Stockler/Divulgação)
O Brasil caminha a passos de tartaruga para universalizar o serviço de saneamento, de forma a garantir a toda a população o acesso ao serviço de água e à rede de esgoto. Para o pesquisador inglês Sandy Cainross, da London School of Hygiene and Tropical Medicine, uma das causas dessa lentidão é o fato de o setor desconsiderar a existência de alternativas mais simples e de menor custo, e, nem por isso, menos eficientes. "Precisamos de soluções públicas mais flexíveis." Para ele, os engenheiros sanitaristas precisam agir segundo a mesma lógica da indústria automobilística. "Se o carro fica mais caro que o valor desejado, ele tira coisas desse veículo", afirma Sandy. Daí, segundo ele, a necessidade de também buscar sistemas de saneamento de baixo custo. "O saneamento tem que estar ao alcance da população mais pobre", pondera o pesquisador inglês, que já trabalhou no desenvolvimento de sistemas de saneamento mais simples para países africanos como Moçambique, Lesoto ou Burkina, e também para o Brasil. Sandy conhece a fundo o saneamento brasileiro. Já realizou estudos em Pernambuco e na Bahia. No final de abril e início de maio, ele esteve novamente no Brasil. Participou de intercâmbio com alunos e pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Sandy é referência internacional nos estudos sobre a influência do saneamento sobre a saúde.



Existe algum estudo que comprove essa relação entre saneamento e saúde?

Sim. Na Bahia, tive um estudante de doutorado que analisou o impacto da dragagem de esgotos sobre a saúde. Em Salvador, houve a implantação de um grande programa de saneamento, o Bahia Azul, que aumentou de 26% para 80% a cobertura de esgotos na cidade. Medimos o impacto disso nas doenças diarreicas da população, que diminuíram 20% nas áreas de maior risco, e 40% nas de menor risco. Os parasitas intestinais diminuíram ainda mais. Foi um estudo grande que deu resultado porque, até então, quase não havia nenhum estudo válido sobre o impacto do esgoto. Os estudos anteriores eram quase sempre sobre esgotamento sanitário e abastecimento de água. Não se sabia, na literatura existente até então, qual o benefício da água e qual o benefício do esgoto. Constatamos que a melhoria na saúde vinha dos bairros que ganharam melhoria do esgoto, extensão do esgoto.

De modo geral, os governantes têm noção dessa relação entre água e saúde? Isso é uma coisa muito clara para o poder público no mundo hoje?

Não sei se para os administradores públicos. Mas é para as agências internacionais de cooperação, como o Banco Mundial, a Cooperação Britânica e outras organizações desse gênero. Mas acho que os governantes são conscientes do fato de que a população quer água em casa. Nós temos visto muitos municípios do Brasil em que o prefeito insiste em manter o sistema de água no município, não cedendo sua operação à companhia estadual apenas para que seja possível fornecer água sem cobrança de tarifa. Acontece uma certa demagogia. Mas os governantes, de modo geral, estão cientes de que a água é uma demanda da população.

Esgoto também? Os índices de atendimento com esgoto encanado são sempre menores que os de água.

O esgoto também, em certa medida, é uma demanda da população. Os governantes sabem que, satisfazendo essa demanda, vão ganhar votos. Pela experiência de outros países, o perfil dos governantes é semelhante em todos os países. De maneira que, geralmente, a consciência deles vem da demanda da população. E a população é mais consciente da importância do saneamento porque gasta menos tempo buscando água do que pelo seu impacto na saúde. Quando perguntamos às populações que estão habituadas a viver sem banheiro, por exemplo, nas zonas rurais da África, e comparamos suas respostas com a de vizinhos que têm banheiro, geralmente a saúde não é a primeira coisa mencionada. É a conveniência, a segurança, às vezes o status social de ter água em casa. Esses são os fatores que, em todo o mundo, motivam a população a reivindicar saneamento. A saúde entra no discurso.

Aqui no Brasil, uma ideia muito disseminada é a de que a universalização do saneamento avança devagar porque o que está enterrado, como os canos de água ou esgoto, não dá voto. O senhor concorda com esse conceito?

Eu concordo que, a longo prazo, o saneamento não dá voto. É capaz de dar voto enquanto a obra está em construção, enquanto há a expectativa de terminar a obra. Mas, uma vez terminada, é rapidamente esquecida. E o governante ainda por cima pode ficar com a culpa se o sistema ficar avariado ou estragado. A gratidão da população é efêmera, não perdura por muitos anos.  

O senhor consegue enxergar um cenário global em que os problemas crônicos do saneamento possam estar satisfatoriamente solucionados?

Acho que uma maneira de suprir a demanda é mobilizar os investimentos das próprias famílias, inclusive das famílias mais pobres.

Como seria isso?
Cito um exemplo. Há muitos países da África em que o esgoto para a população carente é um sistema simplíssimo, de uma fossa seca, um buraco, uma estrutura para a cobertura do buraco e, eventualmente, uma "casinha" para garantir um mínimo de privacidade do usuário. Em Moçambique, onde trabalhei desenvolvendo, para a cidade de Maputo, um sistema muito simplificado, de modo a poder ser transportado, as pessoas sabiam cavar o buraco e também construir a "casinha", para garantir a privacidade. O que lhes faltava era apenas algo para tapar o buraco. Fizemos um levantamento de mercado perguntando às pessoas se elas estavam dispostas a pagar por uma laje para tapar a fossa. E elas estavam. Assim, pouco a pouco, fomos desenvolvendo a capacidade de construção dessa estrutura em cada bairro da cidade. Cobramos o custo total da produção. Não houve subsídio. Não houve limite do número de unidades implantadas. Assim, ao longo de 10 a 15 anos, vendemos mais de 300 mil equipamentos. Mas, em outras cidades, como na capital da Tanzânia, estavam muitos doadores internacionais, como o Banco Mundial e governos europeus, que apresentaram um tipo de banheiro que eu chamo de banheiro de luxo, concebido por engenheiros estrangeiros como sendo, para eles, o mínimo aceitável, com teto e tudo. O problema era que, para poder instalar um banheiro destes, o pobre tinha que tomar dinheiro emprestado. E ninguém queria se endividar. O resultado é que, enquanto Moçambique tinha construído os primeiros 20 mil banheiros, a Tanzânia tinha feito 200, apenas para escolas, postos de saúde e escritórios do partido. Isso é um exemplo de que o engenheiro sanitarista pode responder ao desafio de conceber um produto pelo qual o pobre pode pagar e pode resolver, em grande medida, o problema do esgoto. A longo prazo, há também a tendência de as expectativas aumentarem. Hoje, 20 ou 30 anos depois das primeiras experiências, praticamente toda a população ao sul de Moçambique tem atendimento, quer com rede de esgoto, quer com um desses banheiros, mas deseja sempre mais, pois quer melhorar sua vida.

Aqui para o Brasil, é possível pensar também em soluções locais e de baixo custo?

Sim. O subsídio tem muitos perigos. Podemos ver, no caso do Brasil, uma situação semelhante, que ocorre com as cisternas construídas por famílias rurais no Norte de Minas e na zona semiárida do Nordeste. Há centenas de milhares destas cisternas, mas também uma confusão sobre qual seria o seu objetivo: garantir a quantidade ou a qualidade da água? Os pesquisadores aqui de Minas têm verificado que a qualidade da água das cisternas não é muito melhor que a de outras fontes utilizadas pela população. Então, elas foram construídas para aumentar a quantidade. Mas o curioso é que ninguém pensou em colocar calhas na casa e na própria cisterna para recolher água adicional da chuva, que poderia quase duplicar a capacidade da cisterna. A tendência, quando algo é distribuído com um grande subsídio do Estado, é que ninguém pense em melhorá-lo. Porém, se for vendido, se as pessoas tiverem que pagar por ele, aí o comerciante que vende tem sempre que fazer pesquisa de mercado e verificar se é o melhor produto e se este corresponde ao desejo das pessoas.  

No fornecimento de água, o que é mais importante: a quantidade ou a qualidade?
Em Burkina Faso (país localizado a noroeste do continente africano) trabalhei com o Unicef. Fiquei envolvido em um estudo para o desenvolvimento de um programa de fornecimento de água rural para pequenas aldeias. Eram sistemas muito simples de captação de água de nascentes, com canalização por gravidade para a aldeia. Uma das coisas que tentávamos avaliar era o impacto dos projetos na saúde da população, o que levou algumas descobertas que eram diferentes do que se esperava.

Que descobertas eram essas?
Por exemplo, muitas pessoas pensam que o principal benefício do abastecimento de água é a melhoria da qualidade da água. Mas nós verificamos que o mais importante era a quantidade de água utilizada para higiene, independentemente de sua qualidade. É claro que a água contaminada pode acarretar doenças. Mas, em termos das doenças endêmicas da população carente, que já vivia em uma certa desordem causada pela falta de água para manter as coisas minimamente higienizadas, a grande diferença é quando a água está canalizada até o próprio lote da pessoa, como já ocorre na maior parte do Brasil, embora isso não seja tão comum em muitos outros países.

Mesmo que não seja uma água de extrema qualidade?
Mesmo que não seja de perfeita qualidade. O que importa para estas pessoas, acima de tudo, é a disponibilidade de água para fazer comida, lavar as mãos, sobretudo com sabão, lavar os recipientes e utensílios de comer, enfim, manter a boa higiene. Quando a água está na cozinha, no lote, há também uma mudança qualitativa na gestão de água da casa e as pessoas podem lavar as mãos na torneira, com água de correr. Isso tem levado a muitos benefícios na saúde.

Nos anos 90 houve, no Brasil, uma tentativa de privatização dos sistemas de saneamento, mas não entraram muitas companhias estrangeiras, diferentemente do que ocorreu, por exemplo, com a telefonia. A área de saneamento não é atraente para o capital estrangeiro no Brasil?

Acho que as companhias de água da França, Inglaterra e Estados Unidos já aprenderam que o setor de águas tem uma certa vulnerabilidade. É arriscado, porque às vezes podem se enganar. Um exemplo disso ocorreu com uma das duas empresas que disputaram para operar o sistema de Manila, capital das Filipinas. Ela disputou oferecendo o serviço a um preço tão baixo que era quase um suicídio. O outro lado também é arriscado, pois, se a empresa acerta na proposta, ganha muito dinheiro. Então, é evidente que a população vai se queixar dizendo: não podemos viver sem água. A água é necessária para a vida, mas esta empresa está nos estrangulando, tirando lucros do país para a França, Inglaterra e sei lá onde. Por isso, várias das grandes empresas da área já chegaram à conclusão que o saneamento envolve um sério risco. Das duas, uma: ou se perde dinheiro ou, se se ganha dinheiro, o governo vai interferir, de modo que qualquer das duas situações seria ruim. O saneamento é uma operação de alto risco.

Aqui para o Brasil, é possível pensar também em soluções locais e de baixo custo?
Sim. O subsídio tem muitos perigos. Podemos ver, no caso do Brasil, uma situação semelhante, que ocorre com as cisternas construídas por famílias rurais no Norte de Minas e na zona semiárida do Nordeste. Há centenas de milhares destas cisternas, mas também uma confusão sobre qual seria o seu objetivo: garantir a quantidade ou a qualidade da água? Os pesquisadores aqui de Minas têm verificado que a qualidade da água das cisternas não é muito melhor que a de outras fontes utilizadas pela população. Então, elas foram construídas para aumentar a quantidade. Mas o curioso é que ninguém pensou em colocar calhas na casa e na própria cisterna para recolher água adicional da chuva, que poderia quase duplicar a capacidade da cisterna. A tendência, quando algo é distribuído com um grande subsídio do Estado, é que ninguém pense em melhorá-lo. Porém, se for vendido, se as pessoas tiverem que pagar por ele, aí o comerciante que vende tem sempre que fazer pesquisa de mercado e verificar se é o melhor produto e se este corresponde ao desejo das pessoas.  

No fornecimento de água, o que é mais importante: a quantidade ou a qualidade?

Em Burkina Faso (país localizado a noroeste do continente africano) trabalhei com o Unicef. Fiquei envolvido em um estudo para o desenvolvimento de um programa de fornecimento de água rural para pequenas aldeias. Eram sistemas muito simples de captação de água de nascentes, com canalização por gravidade para a aldeia. Uma das coisas que tentávamos avaliar era o impacto dos projetos na saúde da população, o que levou algumas descobertas que eram diferentes do que se esperava.

Que descobertas eram essas?

Por exemplo, muitas pessoas pensam que o principal benefício do abastecimento de água é a melhoria da qualidade da água. Mas nós verificamos que o mais importante era a quantidade de água utilizada para higiene, independentemente de sua qualidade. É claro que a água contaminada pode acarretar doenças. Mas, em termos das doenças endêmicas da população carente, que já vivia em uma certa desordem causada pela falta de água para manter as coisas minimamente higienizadas, a grande diferença é quando a água está canalizada até o próprio lote da pessoa, como já ocorre na maior parte do Brasil, embora isso não seja tão comum em muitos outros países.

Mesmo que não seja uma água de extrema qualidade?

Mesmo que não seja de perfeita qualidade. O que importa para estas pessoas, acima de tudo, é a disponibilidade de água para fazer comida, lavar as mãos, sobretudo com sabão, lavar os recipientes e utensílios de comer, enfim, manter a boa higiene. Quando a água está na cozinha, no lote, há também uma mudança qualitativa na gestão de água da casa e as pessoas podem lavar as mãos na torneira, com água de correr. Isso tem levado a muitos benefícios na saúde.

Nos anos 90 houve, no Brasil, uma tentativa de privatização dos sistemas de saneamento, mas não entraram muitas companhias estrangeiras, diferentemente do que ocorreu, por exemplo, com a telefonia. A área de saneamento não é atraente para o capital estrangeiro no Brasil?

Acho que as companhias de água da França, Inglaterra e Estados Unidos já aprenderam que o setor de águas tem uma certa vulnerabilidade. É arriscado, porque às vezes podem se enganar. Um exemplo disso ocorreu com uma das duas empresas que disputaram para operar o sistema de Manila, capital das Filipinas. Ela disputou oferecendo o serviço a um preço tão baixo que era quase um suicídio. O outro lado também é arriscado, pois, se a empresa acerta na proposta, ganha muito dinheiro. Então, é evidente que a população vai se queixar dizendo: não podemos viver sem água. A água é necessária para a vida, mas esta empresa está nos estrangulando, tirando lucros do país para a França, Inglaterra e sei lá onde. Por isso, várias das grandes empresas da área já chegaram à conclusão que o saneamento envolve um sério risco. Das duas, uma: ou se perde dinheiro ou, se se ganha dinheiro, o governo vai interferir, de modo que qualquer das duas situações seria ruim. O saneamento é uma operação de alto

Então, a privatização não é uma boa alternativa para avançar na universalização.

Pode ser, desde que a regulamentação governamental seja suficientemente sutil e desenvolvida para poder resistir às pressões. O problema que acontece muito nos países em desenvolvimento é que o capital tem tanta influência sobre os políticos que os políticos não podem controlar o capital. O capital é que controla os políticos. Isso é um grande problema. Na Inglaterra têm ocorrido muitas fraquezas na regulamentação do sistema financeiro, mas a indústria de água tem sido relativamente bem regulada. Assim, por exemplo, quando houve a queda da Enron, o abastecimento de Londres não chegou a ser afetado. A Enron era a dona da Wessex Water, que opera o sistema da capital inglesa. Mas, quando a Enron comprou a Wessex, o regulador tinha exigido, como condição para a compra, que a Wessex não fosse considerada um bem da Enron. Com isso, conseguiu-se preservar a operação do sistema de saneamento de Londres, que foi vendido para uma empresa na Ásia. Assim, desde que o regulador tenha o poder e a independência de atuar, a privatização pode ser uma alternativa.

Nós temos no Brasil municípios e estamos operando sistemas de saneamento. A existência de uma diversidade grande de sistemas é um problema?
Creio que não é só no Brasil que se verifica diversidade muito grande de sistemas. Acabo de me corresponder com uma senhora que é pesquisadora na Índia e estava fazendo uma análise da cobertura lá, estado por estado, distrito por distrito. E verificaram-se enormes diferenças. Parece-me que é uma questão interessante o estudo das razões dessas diferenças. Sobre o Brasil, sei que o marco institucional é bastante complexo. Há muitas variedades de sistemas devido a toda a história da passagem da responsabilidade dos estados para os municípios, gradualmente, nos anos 30, 40 e 50 do século 20. Depois, nos anos 60, o regime militar quis retomar o controle. Ao mesmo tempo, havia alguns municípios que se recusaram a transferir. De qualquer modo, é um retrato muito complexo.  Mas é um campo fértil para as pesquisas tentar entender por que, em um mesmo país, que tem um patamar de desenvolvimento econômico homogêneo, mesmo assim se pode encontrar uma diversidade muito grande de sistemas. Em certos casos, é uma questão de dificuldade técnica, como nas zonas áridas e semiáridas do Nordeste, onde o abastecimento de água não é simples porque o recurso hídrico está em falta. Isso pode ser um fato contribuinte, mas tenho certeza de que temos também fatores institucionais A situação dos recursos hídricos não é fácil de mudar, mas o marco institucional pode ser mudado, pode ser alterado se descobrirmos que uma forma dá mais resultados positivos do que outra. De qualquer forma, é uma questão muito complexa. Veja, por exemplo, o caso de Recife. Um marciano que lá chegasse em uma nave espacial diria que se trata de um só município, mas, de fato, há não sei quantos municípios. Isso surge do crescimento das cidades e dificulta muitas vezes a gestão racional dos recursos hídricos. A Região Metropolitana de Londres também tem cerca de 25, 30 municípios.

Lá o sistema de água é metropolitano?

Sim. Primeiro, porque o setor de água foi organizado segundo as bacias hidrográficas e depois, no governo da senhora Thatcher, estes organismos foram privatizados. A privatização foi diferente da que ocorreu em muitos países da América Latina, porque, no modelo das companhias estaduais brasileiras, as empresas têm concessão para gestão da infraestrutura, mas o patrimônio continua a pertencer ao município. Esse é o padrão que se tem seguido, por exemplo, na Argentina, em Manila, nas Filipinas, e em várias outras cidades. Mas, na Inglaterra, a senhora Thatcher vendeu tudo, inclusive o patrimônio. Lá, tudo é privado.
 

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