Obra do arquiteto Humberto Serpa é tema de estudo

Profissional que marca a paisagem de Belo Horizonte e é reconhecido como influência decisiva na arquitetura mineira do século 20 é tema de estudo de Nara Grossi

por João Paulo 11/05/2013 00:13
Laura Penna/divulgação
(foto: Laura Penna/divulgação)

A arquitetura é a mais pública das expressões artísticas: ela se dá aos olhos gratuitamente, alterando a paisagem e a relação do homem com o mundo. É também a mais habitável das artes, em sua vocação permanente para o diálogo íntimo e muitas vezes inconsciente, entre a obra e a existência das pessoas. E, ainda, vem da arquitetura um sentido de futuro, em sua permanente reinvenção dada pelo entorno, pela passagem do tempo, pela reconfiguração irrefreável dos espaços.

De tal forma o homem contemporâneo está acostumado a lidar com as construções e o urbanismo como destino que, por vezes, se perde a dimensão mais singular da criação: o humano. Como propõe o sociólogo americano Richard Sennet, na confluência entre carne – sentimento individual do criador que se expressa – e a pedra – a obra em si –, a arquitetura surge como uma espécie de realização material da ideia.

É nesse contexto que o estudo sobre a obra de Humberto Serpa pode trazer informações relevantes para a compreensão da arquitetura mineira na segunda metade do século 20. Criador reservado, embora reconhecido pela firmeza de suas convicções estéticas e éticas, Serpa é autor de projetos importantes (o mais conhecido deles o do Banco do Desenvolvimento de Minas Gerais, BDMG, na Rua da Bahia), foi professor de várias gerações de arquitetos na Escola de Arquitetura da UFMG, onde se aposentou em 1994, tem trabalhos premiados de artes gráficas, desenhou mobiliário e é artista plástico reconhecido por suas gravuras.

O que contribui para a face pública de sua obra – afinal são edificações que compõem a paisagem urbana – se equilibra com sua discrição, que nunca fez dele um profissional ou pensador da arquitetura recluso, antes um interlocutor inteligente e elegante. Além disso, em determinado momento de sua trajetória, Humberto Serpa se retira do front dos projetos para se dedicar ao trabalho artístico e à animação intelectual entre seus pares de eleição. O próprio gesto de retirada, num momento de virada estética da arquitetura em direção ao expressionismo exibido do pós-moderno, tem significação ética que reforça as escolhas do arquiteto ao longo de sua carreira.

Humberto Serpa acaba de ganhar um estudo amplo e compreensivo de seu trabalho. Resultado de trabalho de pesquisa desenvolvido durante três anos pela arquiteta Nara Grossi, Humberto Serpa – Arquitetura é fruto de dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Urbanismo e Arquitetura da Universidade de São Paulo, sob orientação de Hugo Segawa. O trabalho é exemplar. Com rigor, mas sem os aborrecimentos típicos da prosa acadêmica, realiza o duplo propósito de apresentar a fatura do arquiteto, dentro do contexto contemporâneo, atentando ainda para dimensões que tangenciam sua trajetória, sobretudo sua inquietação estética e relação com as artes plásticas.

Nara Grossi, com olhar de sobrevoo, inicia seu trabalho localizando o leitor no conjunto da Praça da Liberdade, com sua mescla de estilos e motivações. A partir daí – como uma arquiteta que tem um terreno à frente no qual deve implantar sua construção – centra sua atenção no edifício do BDMG. Em sutil flashback, passa então a recuperar a carreira do jovem Serpa, desde suas primeiras definições profissionais, entre a arte e a arquitetura, analisando uma a uma as realizações do arquiteto. O método genético se revela portador de vocação para a unidade, que se vai resgatar ao final do trajeto.

É importante ressaltar que a perceptível receptividade da análise de Nara Grossi por parte do arquiteto alimenta a dissertação tanto de informação e documentação (o que deve ter dado muito trabalho) quanto da abertura para o comentário, para a reflexão pontual, para o diálogo entre iguais. Só aos verdadeiros professores é dada essa renúncia sincera do lugar do mestre para a criação de uma partilha real do conhecimento. Parece haver algo de socrático na postura de Serpa, que nunca tenta convencer pela autoridade, mas descobrir junto pelo jogo da inteligência.

Nara Grossi tem como ponto de partida de sua pesquisa, além do lugar ocupado por Serpa no conjunto arquitetônico da cidade e no repertório de vários profissionais tocados por suas obras, ideias e magistério, o pressuposto de que há uma íntima relação entre obra de arte e arquitetura. “Para ele a arquitetura-arte alia rigor e persistência, onde a busca exaustiva da solução ideal corresponde à alma do objeto idealizado”, sintetiza. Desde este momento, surge já uma das inspirações que animam o trabalho de Serpa: sua relação com as ideias estéticas de Fayga Ostrower, de quem foi aluno e depois amigo. A arte, mais que mera entrega de emoção bruta, é um fruto delicado e operoso de investigação. A obra de arte (como a arquitetura) não substitui a realidade, ela é a realidade transfigurada, marcada por cada um dos trabalhosos passos de sua investigação pessoal e expressão pública. Tanto o mundo como o artista saem transformados nesse jogo arriscado e necessário da vida.

Ao lado da motivação filosófico-estética, Nara Grossi elege algumas categorias de análise vindas do ambiente arquitetônico, sobretudo de Eoro Saarinen. O arquiteto, como explica a autora, também defende a arquitetura-arte, mas sugere como elementos analíticos um conjunto de conceitos interligados, que se traduzem em seis princípios: integridade funcional, honestidade estrutural, consciência de seu próprio tempo, expressividade plástica, relação do edifício com o entorno no qual se insere e unidade funcional. É por meio desses princípios que ela passa então a analisar as obras de Humberto Serpa. A pesquisadora faz uso ainda de outras categorias mais técnicas, que vão sendo incorporadas pouco a pouco para dar ao leitor não especialista uma aproximação mais adequada à análise arquitetônica – materiais utilizados, uso da cobertura, a relação com a luz natural, a articulação entre os espaços, a lógica projetual.

Com o objetivo de dar uma visão de conjunto da obra de Serpa, Nara Grossi segue a cronologia, inserindo, junto ao material documental, sempre que pertinente, aspectos relacionados à trajetória do arquiteto como artista plástico e professor. Cada capítulo tem um marco arquitetônico que puxa a análise, que é sempre acompanhada de desenhos e informações técnicas necessárias. Assim, o leitor acompanha o início da carreira de Serpa, nos anos 1960, com seus primeiros projetos; o projeto do BDMG, no final da mesma década; os trabalhos realizados nos anos 1970, que firmam o estilo do arquiteto; os projetos de planejamento urbano e arquitetônico; chegando à revisão profissional e existencial que marca o conjunto de trabalhos realizados entre 1981 e 1994. Consciente de seus instrumentos e reflexões, Serpa faz coincidir o auge de suas realizações com a retração da produção de projetos e aposentadoria como professor na UFMG, passando a se dedicar à carreira nas artes plásticas e no debate de ideias. Deixa a prancheta, mas permanece referência na arquitetura.

A dissertação, que precisa chegar logo à forma de livro para bem dos estudos sobre a cultura mineira no século 20, permite a cada leitor se aproximar de uma história. Entre elas, há uma que dá a dimensão humana e profissional do trabalho de Humberto Serpa, a construção da casa de Sônia Viegas (1944-1989). Soninha, como era conhecida por seus alunos, foi a mais brilhante inteligência filosófica que vicejou em Minas. Suas aulas eram joiais de erudição e sensibilidade, que conquistavam alunos que depois se tornavam amigos. Em 1985, Sônia contrata Humberto Serpa para construir sua casa. A casa de Sônia não podia ser apenas uma casa.

A troca de cartas entre Sônia e Humberto, ainda que possa ser tida como uma documentação técnica entre cliente e arquiteto, é um diálogo sobre a beleza e o desafio de habitar o mundo. A pensadora desafia o arquiteto: “Como dar forma espacial a um sonho quando não se é, como você, um poeta do espaço? Vou tentar esboçar pra você um universo fragmentado de qualidades e desejos, na esperança que você o unifique e imprima na pedra, na terra, na distância precisa entre uma janela e uma porta, uma parede e uma escada, um patamar e um vão que ergue das sombras, a recortar, de dentro, o céu”. A resposta vem num memorial curto e exato, com a poesia geométrica que depois ganha a forma de desenhos. O diálogo se estende, a casa, ainda que modificada pelas circunstâncias, brota do chão. Sônia Viegas ocuparia seus últimos anos em torno desse sonho.

Nara Grossi reconhece que as montanhas de Minas ainda limitam o conhecimento do que é realizado no estado, o que explicaria em parte o pouco reconhecimento da obra de Serpa no conjunto da arquitetura modernista brasileira. Além disso, argumenta, a arquitetura nacional viveu, exatamente no período de florescimento da obra de Serpa, um momento de recesso de inteligência e debate, que só começa a ser vencido na última década. A isso se somaria ainda a personalidade do arquiteto, a firmeza de suas convicções, capaz do gesto corajoso e definitivo de trocar a trincheira da arquitetura, do projeto para as ideias. Numa época de aceleração e pressa, Serpa se mantém um arquiteto da cidade perene.

Para Nara, a busca cada vez mais consciente de qualidade de vida, contemplando grandes soluções urbanísticas que voltem seu olhar para o que é essencial na convivência entre as pessoas, é testemunho de que o arquiteto talvez tenha acertado em não fazer concessões. A escolha profissional de Humberto Serpa começou com o dilema entre arte e arquitetura. Sua vida consagra uma síntese possível. E desenha uma tarefa política no horizonte de nossa cidade tão maltratada.

MAIS SOBRE PENSAR