Legado de René Armand Dreifuss se mantém atual 10 anos após sua morte

Cientista político uruguaio é autor de obra imprescindível para a compreensão do golpe de Estado de 1964 no Brasil

por 11/05/2013 00:13
Otavio Dulci

Há 10 anos, com o falecimento de René Armand Dreifuss, a comunidade de cientistas sociais perdia um de seus membros mais laboriosos e criativos. René Dreifuss era um acadêmico de elevada qualificação intelectual, com uma visão abrangente da realidade política, que era o seu foco principal de atenção. Espírito cosmopolita, conhecedor de várias culturas e tradições, sua singular história pessoal serviu bem aos propósitos científicos que traçou e procurou alcançar com êxito. De fato, embora radicado no Brasil e profundamente envolvido com os problemas brasileiros, ele era uma espécie de cidadão do mundo.

Nasceu em Montevidéu, em 1945, filho único de um casal de judeus alemães expatriados às vésperas da Segunda Guerra. Bem jovem, viveu alguns anos no Brasil, mais precisamente no Rio de Janeiro, que era sua cidade preferida. Depois transferiu-se para Israel, onde se graduou em ciência política e história na Universidade de Haifa. Os estudos de pós-graduação foram realizados na Grã-Bretanha – o mestrado em Leeds e o doutorado em Glasgow. Foi em Glasgow que o conheci em 1977. Logo ficamos grandes amigos, tanto mais que nossos temas de pesquisa eram convergentes.

Concluída esta etapa, integrou-se em 1980 ao Departamento de Ciência Política da UFMG, onde permaneceu por cinco anos. De início como membro do Programa de Estudos Comparativos Latino-Americanos (Pecla), núcleo de pesquisa e ensino que havia na época; depois, prestou concurso, incorporando-se então ao quadro efetivo da universidade. Fez boas amizades em Belo Horizonte, não apenas entre seus colegas professores e os estudantes que orientou, mas também nos meios políticos e jornalísticos.

Em 1985, voltou a residir no Rio de Janeiro, transferindo-se para a Universidade Federal Fluminense (UFF). Ali fundou o Núcleo de Estudos Estratégicos e colaborou, como pesquisador associado, na criação e desenvolvimento do núcleo homônimo da Universidade de Campinas (Unicamp), ao qual sempre foi muito ligado. Participou igualmente de projetos de pesquisa em outros centros do Rio de Janeiro.

Na volumosa produção de René Dreifuss podemos discernir um eixo em torno do qual gravitavam suas investigações: a dimensão estratégica da política. Situava-se, portanto, no miolo da disciplina, mas sempre atento aos aspectos sociológicos e históricos que envolvem a ação política. Com essa orientação, os livros e artigos de Dreifuss focalizaram três grandes temas: 1) a organização e atuação convergente das elites de poder; 2) as Forças Armadas como agentes políticos; e 3) as transformações globais do fim do século 20.

A temática das elites de poder foi desenvolvida sobretudo nos três primeiros livros que publicou – 1964: a conquista do Estado, A Internacional Capitalista e O jogo da direita.

1964: a conquista do Estado (1981) era a tradução em português da tese de doutorado de Dreifuss. O sucesso deste livro de estreia derivou, por um lado, da minuciosa e bem documentada exposição que fazia da articulação política que conduziu à insurreição de 1964 no Brasil, retratando de modo bastante inovador as origens e as consequências desse movimento. Mas, por outro lado, resultou das controvérsias que imediatamente foram suscitadas pela recepção da obra – tanto pela imprensa quanto pelos protagonistas ou figurantes do drama de 1964 e mesmo por comentaristas do meio acadêmico – que realçava com evidente impropriedade a sua feição de denúncia, como se fosse uma peça massuda de investigação jornalística.

Não era esse, por certo, o objetivo desse estudo, que se tornou obra de referência indispensável sobre a matéria. Hoje, decorridos quase 50 anos dos fatos tratados, e com um conhecimento bastante completo do período (graças inclusive às pesquisas de Dreifuss), pode-se avaliar melhor a sua contribuição. 1964: a conquista do Estado foi um esforço inovador na medida em que investigava a orientação estratégica da insurreição que derrubou o governo Goulart. E mais, qualificava o caráter militar do movimento e do regime então instalado, demonstrando o caráter eminentemente empresarial do projeto de “conquista do Estado”. Aliás, o subtítulo da tese era “A formação de uma ordem empresarial no Brasil”, que traduz bem a essência da interpretação do autor.

O segundo livro de Dreifuss, A Internacional Capitalista: estratégias e táticas do empresariado transnacional (1986), alargou o plano de análise aplicado ao Brasil para a esfera internacional. Constitui um estudo da rede de elites econômicas que se organizaram ao longo do século 20 nos países centrais, projetando-se para outras partes do mundo. O período examinado é amplo, iniciando-se em 1918, quando terminava a Primeira Guerra Mundial. Como o anterior, este livro contém uma massa considerável de dados, fruto de pesquisa em arquivos norte-americanos e em outras fontes de vários tipos. Após expor o desenvolvimento histórico da “Internacional Capitalista”, que correspondeu à criação e entrelaçamento de diversos fóruns de formulação estratégica do empresariado transnacional nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, o autor dirigiu sua atenção para a América Latina, estudando dois casos exemplares de intervenção da rede de cúpula do capitalismo na periferia do sistema: o golpe brasileiro de 1964 e o golpe chileno de 1973.

É uma obra que mantém seu sentido de atualidade e cujo objeto pode ter adquirido até maior relevo em virtude das circunstâncias posteriores à sua publicação, ou seja, depois da queda do bloco comunista e do aparente triunfo dos interesses promovidos pelas elites transnacionais analisadas.

Marx e Weber A percepção do espaço da política como campo de conflito entre classes situa Dreifuss em uma perspectiva marxista. Contudo, a sua abordagem era também fortemente tributária de Max Weber, dada a ênfase nos aspectos organizacionais, estratégicos e táticos da ação política. Sobre Weber publicou Dreifuss um livro – Política, poder, Estado e força: uma leitura de Weber (1993) em que se observa a afinidade que o ligava à sociologia política do grande cientista alemão.

A combinação teórica dessas duas fontes (a marxista/gramsciana e a weberiana) é muito bem amarrada por Dreifuss. Ela aparece explícita em O jogo da direita na Nova República (1989), estudo em que voltou a se concentrar na experiência brasileira, tratando agora do processo de substituição do regime autoritário de 1964 pela chamada Nova República.

O jogo da direita é um livro singular na produção de Dreifuss, porque baseado exclusivamente em material de imprensa, sem incluir nenhum documento inédito nem dados colhidos em entrevistas pessoais. Como ele informa na introdução, foram 15 meses de pesquisa em 75 mil páginas de jornais e revistas, que lhe permitiram montar o quebra-cabeça da reciclagem das forças dominantes ao longo da transição. Assim, acompanhou as manobras preparatórias de tais forças para atuar na Constituinte, examinando em seguida o resultado das batalhas parlamentares em que se envolveram (uma mescla de vitórias e derrotas), para concluir com uma apreciação da campanha presidencial de 1989.

A distinção gramsciana entre sociedade política e sociedade civil lhe serve para caracterizar o sistema de poder do período de transição como uma sociedade política fechada em seus três componentes: as Forças Armadas, o governo (incluindo os políticos) e o empresariado. É esse triângulo, com as suas interações estratégicas e relações promíscuas, o objeto da análise de conjuntura de O jogo da direita.

Sobre as Forças Armadas, Dreifuss escreveu regularmente, analisando sua trajetória e suas perspectivas de futuro. Preocupava-o uma questão crucial: como poderia a instituição militar brasileira se ajustar a uma sociedade pluralista e regida pelo poder civil em bases democráticas?

Para ele, as Forças Armadas se constituíram como estrutura de poder tutelar no Brasil em face do “vazio de Estado” provocado pelo desgoverno das elites civis e pela fragilidade da sociedade civil. Assumiram papéis governamentais, administrativos e políticos que as sujeitaram a fortes pressões externas e internas. E assim continuavam a funcionar sob a Nova República. Em condições distintas, preenchido o vazio de Estado, seria possível e desejável a adoção de medidas tendentes a modificar o papel das Forças Armadas no rumo adequado à ordem democrática, restabelecendo-as em sua necessária função profissional. Dreifuss examina essa pauta, que abrangia a criação do Ministério da Defesa, a desmontagem do aparelho de segurança e informações herdadas do período ditatorial, a mudança da formação militar, a desmilitarização das polícias etc.

Mudanças globais A agenda de reestruturação das Forças Armadas vem se concretizando desde então, ao passo que novos desafios se apresentaram a elas e ao Brasil nos últimos tempos. São desafios ligados às mudanças estratégicas globais, tema que predominou nos estudos de Dreifuss durante a década de 1990. De tais estudos resultaram muitos artigos, publicados no Brasil e no exterior, assim como o livro A época das perplexidades, talvez sua obra mais abrangente e inovadora.

A época das perplexidades (1996) condensa um extraordinário esforço de decifração das novas realidades que se configuram desde o final do século passado em todos os terrenos da vida social. O objeto da pesquisa é o que se chama geralmente de globalização, mas esta noção não exprime toda a complexidade do processo. Dreifuss designa por globalização a sua face econômica, relativa aos fenômenos da esfera da tecnologia, da produção, das finanças e do comércio, “que atingem de forma desigual e combinada todos os países da Terra, e não somente aqueles que operam em escala mundial” (p. 157). Ele explora com igual atenção as mudanças nos níveis societário, cultural e político, utilizando dois outros termos para distingui-las: “mundialização”, representando a tendência à homogeneidade de comportamentos, padrões de consumo e estilos de vida; e “planetarização”, referente ao âmbito político-estratégico, aos deslocamentos de poder em escala transnacional a que assistimos hoje. Essa última face corresponde à problemática central de Dreifuss ao longo de sua obra, e ele a retoma aqui para mostrar os rumos de um sistema político (polity) planetário em conexão com as mudanças socioculturais e principalmente com a dinâmica econômica e tecnológica da globalização, a qual propicia a vertiginosa intercomunicação que está na base de tudo isso.

Um ponto a assinalar, sobre esse projeto de investigação, é que ele expressa a perspectiva de um analista do Sul sobre mudanças emanadas do Norte. E isso lhe confere particular interesse, na medida em que poucos na “periferia” do sistema-mundo tinham elementos, há 25 anos, para perceber o significado das novas tendências. Pois foi a essa tarefa que Dreifuss se entregou, consciente das finalidades de tal esforço de decifração, que seria muito mais que um exercício acadêmico. Graças ao seu perfil cosmopolita e aos seus amplos conhecimentos, estava apto a acompanhar com familiaridade o que ocorria na vanguarda do planeta. No entanto, ele jamais se mostrou um intelectual colonizado ou deslumbrado: manteve-se sempre solidário com o destino de seu mundo de origem – o destino do Sul e em particular do Brasil.

Por isso, creio que ficaria feliz em ver o trabalho de seu filho Daniel, como produtor do filme No, indicado ao último Oscar. O filme retrata de modo envolvente o ocaso do regime ditatorial chileno em consequência do plebiscito que derrotou Pinochet em 1988. René nos mostrou o começo daquele drama e Danny o seu fim – uma boa parceria, não?
    

Otavio Dulci é sociólogo e cientista político.

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