Uma cidade bipolar

por 04/05/2013 00:13
João Paulo Editor de Cultura %u2013 e-mail: jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br

As cidades, como as pessoas, sofrem dos nervos. E, como a moda hoje é o transtorno bipolar, não é difícil adaptar o diagnóstico para Belo Horizonte. Há alguns anos, o referido transtorno tinha outra classificação nos livros de psicopatologia, era chamado de psicose maníaco-depressiva, ou PMD, o que deixava claro o nome aos polos da nova doença. De um lado a alegria desmedida que testa os limites, a mania; de outro a tristeza que paralisa a alma, a depressão. A cidade está doente e manifesta, em momentos escandidos no tempo, sintomas de mania, com uma euforia marcada pelo desrespeito com o outro; e de depressão, que exibe sua face na perda da vontade de viver em comunidade.

Na semana que passou, o cidadão viveu uma situação de quase imobilidade, o trânsito parou, por vários motivos, de manifestações populares e incapacidade histórica de enfrentar o problema da mobilidade urbana. Sempre foi mais fácil jogar para outras esferas de poder a responsabilidade, enquanto soluções inviáveis são tentadas por ensaio e erro, mais erro que ensaio, deixando a situação cada vez pior com a chegada de mais veículos às ruas. Esta realidade, voltando ao psicodiagnóstico urbano, evidencia momento típico de mania.

O desvio de comportamento é visível na forma com os motoristas vivem a situação de inviabilidade no trânsito. Entre pessoas maduras, quando há uma ameaça ao conjunto dos cidadãos, espera-se que o interesse da maioria prevaleça sobre os desejos egoístas do indivíduo. O trânsito inverte a norma do bom senso, criando em algumas pessoas a sanha de se sair bem às custas do prejuízo do outro. Assim, as pessoas fecham os cruzamentos, sobem nas calçadas ameaçando a integridade dos pedestres, ultrapassam pela direita, furam sinais, colocam o outro em situação de desvantagem e ansiedade. Por que esse comportamento pode ser considerado uma forma de mania, já que não parece alegria envolvida nessas ações de incivilidade?

Ocorre que a mania não é apenas exercício eufórico de satisfação, mas comportamento que se torna operacional quando se sobrepõe ao outro. O maníaco é um anticidadão. Acredito que todos são capazes de condenar o motorista descrito acima. Somos pródigos em julgar erros. No entanto, em outro sintoma de mania no trânsito, no qual muita gente se enquadra, dificilmente as pessoas adotariam o mesmo procedimento judicativo. São casos que se avizinham do que se julga ser a liberdade individual, dentro dos limites da lei, mas que se traduzem em comportamento igualmente egoísta.

Hoje, em muitas famílias o número de automóveis é o mesmo de integrantes do clã. E todos julgam que é absolutamente imprescindível que seja assim, mesmo que isso, no limite, se torne um caos para todos. É o mesmo argumento de quem defende a melhoria do transporte público para os outros, mas que não vai deixar o carro em casa em hipótese alguma e quer apenas as ruas mais vazias para sua conveniência. Há, na mente desses maníacos consumistas, um nítido viés de classe. São aqueles que acham que seu conforto é limitado por suas posses, mas que as posses dos outros (no caso os novos motoristas que compram carro pela primeira vez) não podem interferir no seu conforto. E quase sempre culpam os outros pela situação.

Não bastasse a luta de classe invadir as ruas, a educação para o trânsito sofre a cada dia um revés irrefreável na porta das escolas. São pais que não admitem andar algumas quadras em nome de sua comodidade, ainda que se justifiquem dizendo que fazem essa lambança de parar em fila dupla em nome dos filhos. Além de atrapalhar o fluxo, dão lições aos filhos, dia a dia, de como se tornar uma criança tão sem educação como eles próprios. Pagam caro a escola com uma mão e tiram com a outra uma das mais difíceis lições de civilização: o respeito humano ao outro. Os pais não maníacos que criam crianças depressivas.

VIOLÊNCIA E APATIA Se o trânsito é maníaco, a segurança urbana causa depressão. Também na semana que passou, a cidade viveu uma onda de assaltos violentos, que ganharam os noticiários de forma quase absoluta. Parecia não haver outro assunto na imprensa. Além de noticiar os crimes, o interesse se dirigia para o clima de apatia do cidadão, que se julgava abandonado e apontava como única saída a contratação de serviços privados de vigilância ou a mudança de legislação, sobretudo para permitir a criminalização dos menores. Parece que interessa mais aos meios de comunicação embarcar no jogo da vingança social do que na pesquisa das causas da criminalidade e, sobretudo, da falência das políticas de segurança pública. Afinal, se temos a melhor polícia do país, por que os crimes não decrescem em número, intensidade e violência? O comportamento depressivo é dissolvente e antissocial, ele desintegra a busca de soluções políticas e isola o cidadão em seus medos.

Outro sintoma depressivo que vem emanando de nossa cidade é a perda das referências culturais mais tradicionais e assentadas na história. Por algum tempo houve resistência, na forma de manifestações como a Praia da Estação e mobilização pela retomada de festivais, como o FIT e o FAN, que chegaram a ter suas realizações ameaçadas. No entanto, passada a temporada e as eleições, parece que ficaram apenas os decretos restritivos que cercam os espaços e se empurrou a questão até a próxima crise. O mesmo se vê na decisão de limitar manifestações sindicais. O mesmo poder público que, por incompetência para negociar, não abre canal com as lideranças dos trabalhadores – a verdadeira ação para enfrentar democraticamente as reinvindicações – aciona a Justiça para pedir liminar que restrinja direitos de manifestação conquistados historicamente, desequilibrando o jogo de forças na tentativa de jogar a opinião pública contra os trabalhadores.

Vamos imaginar agora que o cidadão, cansado de problemas de trânsito, segurança e greves, decida dar uma volta e sentar num bar para aproveitar um momento de sossego. É bem provável que sua tranquilidade seja invadida por um automóvel dotado de aparelhos de som voltado para o lado de fora, que o obrigam a ouvir a música que não quer, na altura que não deseja. Trata-se de um exemplo típico de mania. O cidadão que age impondo sua diversão ao outro perdeu a dimensão própria da vida social, que é a contenção dos impulsos primários em nome da funcionalidade social.

Desde Freud, sabemos que o desejo em sua manifestação ilimitada é destrutivo. Por isso a cultura inventou barreiras que canalizam a energia sexual para a busca de outros prazeres. É o que se chama sublimar, em outras palavras, tornar sublime. Quem impõe seu desejo ao outro (na forma de música insuportavelmente alta) atravessa a dupla barreira do bom gosto e do bom senso. O maníaco não é um sujeito alegre, sua felicidade se degenera em euforia vazia que, muitas vezes, tem seu maior gosto em criar desgosto ao próximo.

Uma cidade que faz de seus habitantes vítimas de sintomas de mania e depressão, que se espalham pelas ruas nas formas mais doentias de falta de civilidade e apatia, precisa de terapia. Nesses casos, não há nada melhor que a política, não o choro por cargos nem os conchavos para eleger os amigos e investidores. No entanto, até para chegar à política de verdade, é preciso adotar um comportamento de profilaxia dos comportamentos que a cada dia tornam os cidadãos mais egoístas, voluntariosos e desatentos com o interesse público. A mudança precisa ser para todos, mas começa com cada um. Será que estamos dispostos a abrir mão de parte do privilégio individual para melhorar o bem-estar de todos? Duvido muito. Num mundo de vítimas indefesas e infantis o culpado é sempre o outro. Além de bipolares, somos mimados e irresponsáveis. E nossos governantes bem que aproveitam tanta patologia. A medicina chama de iatrogenia uma doença causada pelo próprio tratamento. O transtorno bipolar de nossa cidade e estado é iatrogênico. Fazemos força para ficar cada vez mais doentes.

MAIS SOBRE PENSAR