Tradutor de 'O capital' explica os desafios enfrentados na versão do texto de Karl Marx

Entre as dificuldades está a necessidade de manter a precisão conceitual. Tradutor fala dos planos da publicação integral da obra

por Rubens Enderle 20/04/2013 00:13
ALEXANDRE
(foto: ALEXANDRE)
A tradução de O capital apresenta vários desafios. Em primeiro lugar, o tradutor precisa primar pela precisão conceitual. Marx emprega conceitos que, à primeira vista, podem parecem sinônimos, porém possuem um significado muito distinto. Por exemplo, é preciso preservar a distinção sutil entre termos como “mais-trabalho” (Mehrarbeit), “sobretrabalho” (Überarbeit) e “trabalho excedente” (Surplusarbeit). Há também conceitos de caráter filosófico, dotados de uma forte carga hegeliana, conceitos que o próprio Marx utilizara em suas obras juvenis, como, por exemplo, “alienação” (Entäusserung, Entfremdung), “estranhamento” (Entfremdung), “determinidade” (Bestimmtheit), “suprassunção” (Aufhebung), “materialidade” (Materiatur) etc. Nesse caso, a dificuldade é saber se esses termos são empregados em O capital com o mesmo sentido que apresentavam em Hegel ou nas obras anteriores de Marx, ou se possuem ali um significado diferente. Para isso, é necessário um bom conhecimento de Hegel e do assim chamado “jovem Marx”, além de uma cuidadosa análise de cada termo em seu contexto específico. Em minha tradução, apresento todos os conceitos mais importantes seguidos do original (entre colchetes), além de um glossário de conceitos no apêndice.

Um último exemplo sobre o desafio da precisão conceitual: no item sobre o “caráter fetichista da mercadoria”, Marx emprega diversas vezes a palavra sachlich, um adjetivo/advérbio que significa “relativo a coisa”. Como falta ao português palavras como “coisal”, “coisalmente”, esse termo é geralmente traduzido por “material”, “materialmente”. Marx emprega esse termo em oposição a persönlich (pessoal). Ocorre que, para Marx, as relações pessoais, mesmo aquelas livres do “estranhamento”, são relações também materiais, de modo que o problema não está em que, no sistema da produção de mercadorias, as pessoas passam a se relacionar “materialmente” (pois isso elas fazem necessariamente em qualquer sociedade), mas sim que elas se relacionam como “coisas”. Em alguns casos, isso é possível de solucionar com o emprego de “reificado(a), reificadamente”, mas em outros não. Em minha tradução, indico todas as ocorrências desse termo (colocando o original após a tradução) e insiro notas para explicar essas nuances.

Um segundo desafio é transitar entre os diversos estilos da obra. O livro 1 de O capital é uma obra altamente eclética do ponto de vista estilístico. Há passagens de tom mais filosófico, como o conhecido capítulo sobre “o caráter fetichista da mercadoria”, outras de caráter mais analítico, de dissecação da realidade, outras com longas seções de contabilidade que põem à prova a paciência e resistência do leitor, além de uma grande parte de forte caráter narrativo, dedicada à descrição das condições da classe trabalhadora inglesa, em grande parte baseada na obra de Engels A situação da classe trabalhadora na Inglaterra.

Em algumas passagens, Marx adota um estilo mais literário, e chega a construir personagens (como o do beberrão vendedor de Bíblias) ou diálogos imaginários entre um trabalhador e um capitalista. Além disso, ele se utiliza, em seus exemplos, de vários personagens literários célebres, como Robinson Crusoé, Shylock, Fausto, Dom Quixote, entre outros, e faz inúmeras outras referências literárias. Mas isso só aparece em algumas passagens, em meio a capítulos de tom completamente distinto. Portanto, não acredito que se possa falar do livro I de O capital como uma obra dotada de um estilo literário definido. Isso pode ser encontrado em outras obras de Marx, como em O 18 de brumário de Luís Bonaparte ou no Manifesto comunista.

Mega e MEW
Acompanhei por dois anos o trabalho de editoração da Marx-Engels-Gesamtausgabe (Mega), em Berlim. Lá tomei conhecimento dos critérios filológicos que orientam o projeto e as várias etapas da edição dos manuscritos, desde a decifração dos escritos (na caligrafia terrível de Marx) até a composição do aparato crítico. Os volumes da Mega reproduzem os textos de Marx em sua forma original, usando uma elaborada técnica filológica. Quando se trata de manuscritos, a edição da Mega transcreve todas as camadas de composição do texto, as anotações marginais, até rabiscos aparentemente acidentais. É uma filologia cirúrgica, extremamente meticulosa.

Esse período influenciou muito o trabalho de tradução, pois minha preocupação como tradutor é permanecer o mais fiel possível aos textos, o que, no caso de Marx, implica se desvencilhar de chavões e vulgaridades ideológicas que se acumularam sobre sua obra ao longo de séculos. Daí a importância da edição da Mega para o estudo de Marx como ele realmente é, e não em suas diversas caricaturas ideológicas. Por outro lado, isso não implica tentar salvar Marx das inúmeras contradições e inconsistências de sua teoria econômica, como aquelas denunciadas (e até hoje não respondidas – e, pessoalmente, acredito que sejam irrespondíveis – pelos marxistas de modo satisfatório) pelos economistas da “escola austríaca”, como Böhm-Bawerk e Ludwig von Mises.

No caso do livro 1 de O capital (a 4ª edição), a edição da Mega não traz muitas novidades em relação à edição da Werke (MEW), pois o livro 1 foi editado ainda durante a vida de Marx, e ganhou mais duas edições depois de sua morte. Portanto, o texto-base da Mega é praticamente o mesmo da MEW, com exceção das notas da edição, que em alguns casos suprem lacunas da MEW. Há, certamente, outras vantagens da edição da Mega em relação à da MEW: por exemplo, a Mega traz no seu volume de apêndice todas as passagens da edição francesa de O capital que não foram incorporadas por Marx na edição alemã. Seria interessante apresentar isso ao leitor brasileiro, mas não foi possível incorporar essas passagens em nossa edição, já que isso tornaria o volume grande demais (na verdade, exigiria desmembrar o livro em dois volumes, o que é desfavorável do ponto de vista comercial).

A grande diferença se encontra nos livros 2 e 3, que Marx deixou na forma de manuscritos (montados por Engels naquilo que hoje conhecemos como livros 2 e 3 de O capital). A Mega, além da versão de Engels, edita os manuscritos em sua integralidade, o que revela enormes diferenças em relação à montagem feita por Engels. Em minha tradução dos livros 2 e 3 do Capital, serão incluídas as variantes mais importantes (por mim selecionadas) dos manuscritos. Trata-se, portanto, de um trabalho não só de tradução, mas de pesquisa em mais de 2 mil páginas de manuscritos. O livro 2 deve sair no início de 2014, e o livro 3 em 2015.

A tradução dos livros 2 e 3 é, por um lado, mais fácil que a do livro 1, pois você se habitua com o vocabulário e a tradução dos conceitos fundamentais já está estabelecida. Por outro lado, é muito mais difícil na medida em que exige um árduo trabalho de pesquisa para estabelecer o texto final, incorporando as variantes dos manuscritos.

Rubens Enderle é mestre em filosofia pela UFMG e tradutor de O capital, Crítica da filosofia do direito de Hegel, Ideologia alemã e Guerra civil na França, todas de Karl Marx. Atualmente vive na Alemanha e faz doutorado na Universidade Ludwig-Maximiliam sobre um crítico radical de Marx e contrário ao marxismo em geral, Eric Voegelin. Trabalha na tradução da obra
Divã Ocidental-Oriental, de Goethe.



Por que ler O capital hoje?



O capital, de Karl Marx, apesar de ser uma obra escrita no século 19, apresenta atualidade indiscutível. Seu maior mérito é o de desenvolver uma análise crítica e detalhada do capitalismo, considerando sua dinâmica e seus fundamentos econômicos. Como toda obra clássica, ultrapassa o tempo de sua produção. Tal fato, todavia, não exime o leitor de lê-la em uma perspectiva histórica.

As análises apresentadas em O capital evidenciam sólida historicidade e iluminam a compreensão das crises cíclicas do capitalismo, inclusive a que o mundo hoje presencia. O capital não é um livro destinado somente aos adeptos do socialismo. Ao contrário, apesar de sua densidade e complexidade, deve ser lido por todos que querem compreender o funcionamento da economia capitalista. Explica como nenhuma outra obra publicada até os dias presentes a transformação do dinheiro em capital, a extração do lucro, a circulação do capital, a internacionalização da economia, o valor trabalho e os conflitos sociais inerentes ao que o marxismo denomina modo de produção capitalista.

O capital é um tratado holístico, pois aborda problemas vastos e interconectados. Integra o elenco das principais obras do pensamento filosófico, econômico e social da humanidade. É imprescindível para a compreensão do mundo em que vivemos, onde convivem, no plano internacional, dois tipos de cultura de base econômica: a financista do lucro fácil e a consumista dos prazeres voláteis.

Lucilia de Almeida Neves Delgado, historiadora e professora da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).


• • •


Ao longo de todo o século 20, a morte de Marx e de seu legado teórico foi anunciada repetidas vezes, ora por seus adversários – filósofos, políticos, economistas –, ora mesmo por aqueles que até anteontem professavam o marxismo. O simples fato de que o anúncio foi repetido periodicamente revela que o defunto teima em não se deixar sepultar. De fato, a partir de 2008, a crise econômica nos EUA e na Europa provocou um interesse renovado pela leitura das obras de Marx: jornais como o New York Times e The Times têm falado de um “retorno a Marx” e até mesmo a insuspeita revista Time reconheceu em matéria recente a “vingança de Marx” sobre seus adversários.

Se é óbvio que o capitalismo contemporâneo é, em alguns aspectos, distinto daquele que havia no século 19, não é menos verdade que sua natureza fundamental continua a mesma. O capitalismo é, como Marx mostrou de modo pioneiro, um sistema econômico expansivo e inexoravelmente propenso a crises. O capitalismo ainda é aquele examinado por Marx e O capital é, de longe, a melhor análise já feita sobre as estruturas fundamentais do capitalismo, suas determinações essenciais, “as leis econômicas que regem o movimento das sociedades modernas”. Por essa razão, ler O capital continua importante e atual, leitura que é incontornável para quem quiser entender as questões do nosso tempo.

Hugo E. A. da Gama Cerqueira, professor do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar UFMG).


• • •


A situação em que vive a humanidade em pleno século 21 é aviltante. Estamos longe dos ideais de progresso e desenvolvimento humano. Ainda mais distantes dos ideais de justiça e solidariedade. Em tempos de redes sociais virtuais, a sociabilidade parece algo fugidio. Os laços que nos unem estão frouxos ou ausentes. A dor do outro já não nos toca.

O capital, de Marx, buscou compreender, nos clássicos da economia e da política, o modo de funcionamento do sistema capitalista. Não há conhecimento nesses campos, produzido posteriormente ao livro, que tenha escapado do diálogo com ele. O motivo é simples. Em O capital encontramos destrinchada a lógica de funcionamento do sistema, as origens de suas inevitáveis crises, a busca incessante pelo lucro, a produção da mais-valia, a escravização da classe trabalhadora, o imperialismo, a impregnação de toda vida social com o individualismo e o consumismo.

Mas, ainda mais importante, o livro desmonta o sistema capitalista como construção histórica, deixando em aberto o caminho para que a humanidade se reorganize segundo outra lógica. O capital precisa ser lido e relido por todos, e, em especial, por aqueles sinceramente comprometidos com os ideais de mudança. A partir da compreensão, a ação se faz necessária, outro ensinamento fundamental de Marx.

Frederico Santana Rick, cientista social e militante da Assembleia Popular e das pastorais sociais.

MAIS SOBRE PENSAR