"Quando a imprensa é ameaçada quem perde não são os acionistas, mas os cidadãos."

por João Paulo 20/04/2013 00:13
Auremar de Castro/Em/D.A Press
Rotativa em ação: sem ela, o mundo seria muito menos interessante (foto: Auremar de Castro/Em/D.A Press)
Numa cena de um dos filmes de Woody Allen, o personagem sai do consultório do médico dando pulinhos pela rua. Como bom neurótico, ele havia procurado o profissional porque sabia que estava condenado a uma morte rápida. Ao receber o diagnóstico que o livrou do câncer imaginário no cérebro, se sentiu como um passarinho. Mas no segundo pulinho percebeu que, se não ia morrer tão rápido, nem por isso escapava do destino de morrer, como todo mundo. E a depressão voltou a ocupar seu espírito. Para Woody Allen, estamos divididos entre os miseráveis e os infelizes. E é sempre melhor ser infeliz.

O teorema de Allen costuma ser vivido todos os dias pelos jornalistas. Somos perseguidos pela inevitabilidade do fim dos jornais. Apenas os prazos mudam, se alargam um pouco, mas deixam sempre um rastro de crise no ar. O jornalismo, com sua função social de garantir a liberdade de opinião na sociedade, vem sendo açodado por todos os lados. Há o ataque das novas mídias, a fuga de leitores em direção a plataformas mais divertidas, o descréscimo da lucratividade das empresas, o avanço de investidores sem tradição no negócio e a perda dos objetivos éticos em nome do interesse financeiro.

O que poderia ser um sinal do nosso tempo, marcado pela tendência ao rebaixamento intelectual, no entanto se mostra mais estrutural. Os jornais não estão se tornando menos relevantes. Há razões de ordem prática e filosófica para essa situação. Em primeiro lugar, nosso jornalismo, que segue de perto a inspiração americana (independência financeira como lastro da liberdade editorial), sempre se caracterizou, pelo menos em tese, pela busca de neutralidade política e qualidade em termos de informação. Para isso é preciso que os dois lados funcionem e se respeitem: num polo a administração eficiente, no outro a competência jornalística. Quando um dos lados manca, o conjunto todo baqueia.

Em outros contextos, como em alguns países europeus, o jornalismo se sustenta a partir de projetos políticos explícitos. Há, entre eles, periódicos de esquerda e de direita. Na nossa cultura, costumamos dividir o trabalho entre bom e mau jornalismo. Por isso é curioso observar como, dos dois lados do espectro jornalístico, marcados pela mesma crise, as respostas tendem a anular as diferenças. O que se exige hoje das publicações, num cenário de ameaça de morte, é que se viabilizem como negócio. O que foi um pacto tácito entre donos e jornalistas hoje se torna uma relação desequilibrada.

Há, como se vê, duas questões em uma. A primeira diz respeito a um negócio em estado de ameaça de extinção em razão de mudanças culturais e tecnológicas. Pode parecer um paradoxo, mas é exatamente o excesso de informação o maior inimigo do bom jornalismo. Nem todo fato é informação, nem toda notícia publicada é jornalismo. A confusão gera não apenas um cenário confuso como eticamente cambeta. A tendência ao deslocamento da informação trabalhada com inteligência jornalística para o mero dado apresentado pela multiplicidade de suportes tecnológicos não traduz uma nova democracia informativa, mas uma balbúrdia.

A segunda questão a ser destacada é que o negócio da comunicação em si não tem nada a ver com a informação como base das decisões democráticas. A liberdade de informação é um patrimônio da sociedade, não dos donos dos veículos, que, é bom reconhecer, sempre souberam disso. Informação existe para tornar os cidadãos mais capazes de tomar decisões. O fato de elas chegarem, até então, prioritariamente pelos jornais era uma conquista de civilização, não uma decorrência de denodo empresarial.

Quando a imprensa é ameaçada quem perde não são os acionistas, mas os cidadãos. É o que se vê, por exemplo, sempre que eventos importantes tomam a cena, seja a eleição de um presidente, um atentado, um protesto político que mobiliza multidões. Se o leitor entende que cabe ao jornalismo ordenar o fatos, encontra em seu periódico alimento para se posicionar no mundo. Caso contrário, se é tomado pela anarquia dos achismos, se torna um cínico que apenas confirma seus prejulgamentos. Não há nada menos iluminista que um blog inspirado por paixões.

Sem receita O jornalista norte-americano Philip Meyer publicou há alguns anos um livro provocativo desde o título: Os jornais podem desaparecer? Como salvar o jornalismo na era da informação (Editora Contexto). O desafio do autor era separar as coisas. Enquanto o mundo se afoga em informação inútil e irresponsável, a sociedade perde uma de suas mais importantes salvaguardas de liberdade. Com o excesso, a primeira baixa foi a qualidade. Acompanhamos em todo o mundo o processo de reestruturação da imprensa, que, quase sempre, segue o receituário do FMI: cortar na carne o que é essencial (no caso de países os programas sociais, no caso do jornalismo o investimento na busca da notícia) para garantir a sobrevida do arcabouço financeiro.

A grande mudança começa a ocorrer quando o jornalismo perde a primazia da informação. Hoje não precisamos de jornal para conhecer o mundo, nem de jornalistas para reportá-lo. Havia ainda uma barreira de entrada que era dada pelo alto custo do mercado de papel e do maquinário. O que não mais se sustenta. Hoje se faz jornal sem papel e máquinas. E mesmo essas se tornaram mais acessíveis. Fora do domínio técnico, resta ao jornalismo o coração de seu negócio: a ética. E esta, hoje, exatamente pela penúria, se torna cada vez mais relativa.

Há um pano de fundo comum em todos os negócios ameaçados por crises. O que faz lembrar uma célebre “teoria” de Henry Ford, um dos pais práticos do capitalismo industrial: o bom negócio deixa os trabalhadores felizes, a sociedade mais forte e os acionistas com um dinheirinho a mais no bolso. Ford não seria recrutado hoje por um head hunter nem para administrar um galinheiro: ninguém quer saber de trabalhadores felizes (zona de conforto é considerado crime e longevidade corporativa sinal de incompetência), responsabilidade social é pauta da área de marketing e os acionistas não querem saber de diminutivo.

Voltando ao jornalismo, é claro que há saídas. E não são novas. O próprio debate sobre o controle dos meios de comunicação mostra que há uma vitalidade na questão, que precisa ser retomada e aprofundada. Se o jornalismo fosse tão desimportante, por que se preocupar com controles? Há, dos dois lados da questão, a percepção do papel da imprensa no aprimoramento da vida social, ainda que divirjam politicamente sobre a melhor forma de efetivá-lo. Por isso, mais que atacar os monopólios ou demonizar os controles, é preciso um consenso sobre de que imprensa estamos falando quando julgamos fundamental que o jornalismo siga seu caminho numa sociedade democrática.

Para ficar em apenas três sugestões, talvez seja o momento de apostar na credibilidade – deixando de lado os acordos conjunturais em torno de projetos políticos e econômicos –; investir na qualidade, de modo a suplantar a tendência anti-intectualista que joga contra os próprios jornais (nada mais burro que incentivar o leitor a não ler em nome do entretenimento); e fazer da ética o elemento essencial de toda notícia veiculada. A forma de entender o que é ética no jornalismo é singela: dada uma notícia, veja quem está à frente, o bem comum ou o interesse particular. Você matou a charada.

MAIS SOBRE PENSAR