Biografia recupera a história pessoal e política de Carlos Marighella

Ex-deputado e guerrilheiro era o inimigo número um da ditadura

por Carlos Herculano Lopes 06/04/2013 00:13
Maria Tereza Correia/EM/D.A Press
(foto: Maria Tereza Correia/EM/D.A Press)
Desde a sua morte em 4 de novembro de 1969, quando caiu com o corpo crivado de balas numa rua de São Paulo, durante operação comandada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, que a vida e trajetória política do ex-deputado e guerrilheiro Carlos Marighella tem sido motivo de pesquisas e de interesse por parte de historiadores. De todos os trabalhos lançados até agora, o mais completo é o recente Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo, do jornalista Mário Magalhães, que está chegando aos 30 mil exemplares vendidos. Para falar sobre a trajetória do personagem, que foi o fundador da Ação Libertadora Nacional (ALN), maior grupo armado de oposição à ditadura civil-militar de 1964, ele esteve esta semana em Belo Horizonte, a convite da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Nascido no Rio e com passagem por redações de vários jornais, Mário Magalhães, que precisou de nove anos de dedicação até ver o livro pronto, não esconde sua admiração pelo homem Carlos Marighella. “A vida dele, desde os tempos de menino pobre em Salvador, até a sua morte, foi fundamentalmente uma vida de ação”, disse em entrevista ao Pensar.

Carlos Marighella é um homem que hoje, 44 anos depois de sua morte, está mitificado tanto pela direita como pela esquerda. Como surgiu a ideia de escrever a sua biografia?

Nasci na primeira semana de abril de 1964, no auge do golpe militar, e esse é um episódio da história do Brasil, com todos os seus desdobramentos, que sempre me interessou. Além do mais, sempre fui fascinado pelo jornalismo e pelo seu gênero mais nobre, que é a reportagem. Quando estava com 39 anos, e trabalhava como repórter da Folha de S. Paulo, me veio uma vontade muito grande de, antes de chegar aos 40, mergulhar numa reportagem, sem prazo para terminá-la, como exige a redação de um jornal. Foi quando me veio a ideia de escrever sobre Carlos Marighella, pelo fato de que, gostando-se ou não dele, é impossível ficar indiferente à vida frenética e trepidante que ele teve. Durante nove anos me dediquei a este livro, sendo que cinco deles com exclusividade. Entrevistei 276 pessoas, das quais cerca de 40 já faleceram; tive acesso a quase 70 mil páginas de documentos, encontrados em 30 arquivos públicos e privados do Brasil e do exterior, como na Rússia, República Tcheca, Estados Unidos e Paraguai, e a bibliografia do livro consta de 600 títulos. Sendo assim, depois de toda essa apuração colossal, me senti apto para narrar a história de Marighella, por meio da qual tento tirar o fôlego do leitor, da mesma forma como foi frenética e cheia de aventuras a vida do meu biografado.

Você disse que é impossível ficar indiferente à trajetória de Marighella. Por quê?

A vida de Carlos Marighella, desde a sua infância, foi marcada pela ação. Normalmente, quando lemos sobre a vida de alguém, o que existe de mais enfadonho é a infância e a juventude do personagem. Não foi assim no caso dele, que desde novo teve uma vida essencialmente alucinante. Aos 17 anos, em Salvador, quando estudava no ginásio, respondeu a uma prova de física em versos. Aos 20 anos, em 1932, ele foi preso pela primeira vez, por participar de uma manifestação contra o governo de Getúlio Vargas. A sua vida, desde o início, até a morte, foi fundamentalmente de ação. Mas quero deixar bem claro que não escrevi uma biografia para enaltecer a figura de Marighella nem para denegri-la. Tentei fazer uma reportagem, na qual pudesse tratar um perfil o mais fiel possível do meu biografado. O livro não é um ensaio biográfico, nem um trabalho de historiador ou cientista político, mas um trabalho essencialmente jornalístico, ou seja, uma reportagem. E, como tal, tem de necessariamente oferecer ao leitor um conjunto de aspectos envolvidos em torno de uma época e de um personagem. O meu desafio, na essência, foi oferecer ao leitor o maior número possível de informações, para que cada um, independentemente de ideologia, possa tirar as suas próprias conclusões.

Quais as surpresas que você foi encontrando enquanto escrevia sobre o homem e o mito Marighella?


A primeira questão da figura de Marighella é que existe uma grande mitologia de oposição a ele, e outra a favor. E o que posso assegurar, depois de nove anos de trabalho, é que a vida desse homem é muito mais fascinante que qualquer mitologia que possa ter sido construída em torno dele. Outro aspecto: é impossível separar o político do homem Carlos Marighella, isso desde a sua juventude, quando se tornou um revolucionário, seja na maneira de vestir, de se postar em sociedade, de lidar com as pessoas; enfim, de viver a vida. E essa postura ele manteve até a morte. Ele era um homem que fazia o que dizia e dizia o que fazia. A gente pode concordar ou não com suas ações, discursos e pensamentos, que foram sendo desenvolvidos ao longo de sua vida. Mas uma coisa é certa: eles eram absolutamente fiéis e coerentes.
 
Você acha que em algum momento Carlos Marighella chegou realmente a pensar que poderia derrotar a ditadura por meio da luta armada?

Com toda a certeza, ele não era um suicida. Existiram várias maneiras de combater a ditadura militar que foi instaurada no Brasil em 1964 e a luta armada foi uma dessas formas. Embora ela tenha sido derrotada, acho muito difícil afirmar que Marighella e o combate que ele travou durante toda a sua vida tenham sido derrotados. Alguns exemplos: ele foi um destacado constituinte de 1946, ao lado de gigantes como Gilberto Freyre, Barbosa Lima Sobrinho, o ex-presidente Juscelino, Luís Carlos Prestes e tantos outros. Na constituinte, da qual foi membro da mesa, batalhou por várias causas, entre elas pela instituição do divórcio. Embora fosse ateu, lutou pela liberdade religiosa no Brasil e se bateu pela livre organização dos partidos, como temos hoje. Se empenhou pela instituição do 13º salário e por uma série de outras coisas. Por essas e outras, tendo a discordar da tese de que ele tenha sido um derrotado, ou seja, muitas das bandeiras pelas quais batalhou, com o tempo, acabaram sendo introduzidas na vida do país. Já no caso da luta armada, ele acreditava que, depois de todo o processo democrático ter sido asfixiado pelos militares, não existia outro caminho para derrubar a ditadura, como havia acontecido em Cuba, na Argélia, no Vietnã e na China. Só que aqui no Brasil acabou não se concretizando.

Embora fosse comunista e ateu, Marighella acreditava no papel social da Igreja Católica, tanto que se ligou aos dominicanos. Isso não é meio contraditório?


É curioso perceber que, embora durante boa parte da sua vida adulta ele tenha sido um militante comunista, e portanto ateu, no entanto, na infância, teve uma formação rigidamente católica. Sua mãe, que era filha de escravos, era muito católica. Marighella foi batizado, crismado, fez primeira comunhão. Quando criança, a mando da sua mãe, batia de porta em porta na Baixa do Sapateiro, em Salvador, pedindo esmolas para encomendar missas para São Cosme e Damião. Talvez tudo isso o tenha levado a ter boas relações com setores progressistas da Igreja Católica, como no caso dos dominicanos, muitos deles de origem mineira. Outra coisa curiosa de dizer é que ele, no início dos anos 1960, esteve também ligado ao candomblé e se descobriu filho de Oxóssi.

Propagou-se muito, principalmente entre os setores da repressão, que os dominicanos teriam entregado Carlos Marighella, o que acabou resultando na sua morte. Até onde vai o mito e a realidade nisso tudo?


Depois de nove anos de pesquisas, a conclusão a que cheguei em relação a isso é que a versão oficial da ditadura para a morte de Carlos Marighella é um dos relatos falsos que mais tempo perdurou na história recente do Brasil. E digo por que: na versão da ditadura, naquela ação comandada pelo delegado Sérgio Fleury, constou que ele estava armado. E o conjunto de provas, reunidas nos tempos seguintes, mostrou que não portava arma nenhuma, não tinha nem um canivete no bolso na hora em que foi executado por pelo menos 29 agentes policiais, armados até os dentes. Ou seja, aquilo foi um assassinato, puro e simples, perpetrado pelas forças da repressão. Quanto aos dominicanos, eles arriscaram suas vidas, muitos sofreram e foram torturados para ajudar no combate à ditadura, do modo que, na época, achavam ser o mais correto. No caso do meu livro, evitei emitir opiniões pessoais, procurei fazer um trabalho isento, de repórter, para que cada leitor pudesse formar seu próprio juízo a respeito dos fatos. É verdade, sim, que a ditadura chegou até a Marighella por meio de informações obtidas de dominicanos, que foram presos e torturados. Só que – e aqui vou dar a minha opinião – obter informações por meio de tortura, como aconteceu naquela situação, é responsabilidade do Estado, por intermédio do seu agente torturador, e não do torturado. Portanto, quem matou Carlos Marighella foi a ditadura, o Estado brasileiro, e ponto final.


Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo

. De Mário Magalhães
. Editora Companhia das Letras, 732 páginas, R$ 56

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